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A luz sensível do Imagens sobre o povo

Por: Alan Miranda (alan@observatoriodefavelas.org.br)

“Nós” é como a gramática chama a parceria do eu com outra(s) pessoa(s) na conjugação dos verbos. E “Nós” também é o título do livro e da exposição que conceituam a comemoração dos 10 anos do projeto Imagens do Povo (IP). No princípio, o verbo era fotografar, mas com a luz de todos que compõem esse momento celebrativo, os verbos se tornaram muitos outros.

O projeto, realizado pelo Observatório de Favelas e idealizado pelo fotógrafo João Roberto Ripper em 2004, atua como um centro de documentação, pesquisa, formação e inserção de fotógrafos populares no mercado de trabalho, aliando a técnica fotográfica às questões sociais, registrando o cotidiano das favelas, através de uma percepção crítica. Por todo o trabalho que vem realizando e pelos frutos que gerou, “Imagens do Povo” é um nome que cai como uma luva. Não apenas por representar “o povo”, mas por ser produzido por quem se sente parte integrante desse povo. Trata-se portanto de um nome que valoriza o caráter empático da proposta. As fotos exibidas no livro e na exposição, que acontece no Galpão Bela Maré, revelam-se como um elo entre fotógrafo e fotografado.

Jovens da favela da Maré visitam exposição - Foto: Erika Tambke
Jovens da favela da Maré visitam exposição – Foto: veri-vg

 

O conceito “Nós”, segundo Rovena Rosa, coordenadora do projeto e fotógrafa, vem ratificar essa ideia, além de valorizar o aspecto humano, que tantas vezes é negado nas representações midiáticas dos territórios populares. “Nesta disputa do imaginário das regiões periféricas buscamos trazer novas histórias sobre estes espaços. Nesta lógica de atuar na sociedade através da fotografia, passamos a ser reconhecidos como uma experiência bem sucedida no sentido de conseguir oferecer um novo ponto de vista sobre a questão das favelas e periferias” – pontua ela.

 

A proposta do Imagens acaba por se relevar em outros aspectos que não apenas os capturados pelas lentes. Os livros foram distribuídos gratuitamente para os visitantes na abertura da exposição. A exposição, por sua vez, acontece no Galpão Bela Maré, onde foi realizada a terceira edição da mostra de arte contemporânea Travessias, situado na favela da Maré. Segundo Rovena, expor na Maré é uma das formas de dar um retorno do trabalho do IP ao bairro que sedia o projeto, onde vários dos fotógrafos da agência moram e onde boa parte da documentação que está no banco de dados é realizada: “Já realizamos exposições em diversos museus como CCBB, Centro Cultural da Justiça Federal, MAC, MAM, além de mostras em outros países como Inglaterra, França e Estados Unidos. Mas expor na nossa ‘casa’ tem um gostinho especial. É onde estamos mais próximos dos fotografados. O Centro Cultural Bela Maré é um ícone no sentido de democratizar o acesso a bens culturais e estreitar as distâncias físicas e simbólicas para o público da periferia” – explica a coordenadora.

 

Para Janis Clémen, coordenadora do programa Educativo, a exposição “Nós” simboliza o ponto inaugural de um processo em que artistas, moradores e pessoas que circulam [ou trabalham] pela Maré possam se reconhecer como agentes produtores de cultura, promovendo reflexão, apropriação e empoderamento de territórios subjetivos e sociais. Assim como no Travessias, a nova exposição também será acompanhada do projeto Educativo, que busca criar canais de mediação entre espectador e obra, bem como impulsionar a construção de saberes, de modo coletivo. Para a exposição, a equipe de educadores vai trabalhar com o conceito “Constelamo-nos”, acreditando que cada conjunto de pessoas ou contexto constitui-se em um pequeno sistema-constelação, carregando consigo especificidades em seu funcionamento, posto que seus constituintes sejam complexos e diversos. “O Programa Educativo do Galpão Bela Maré se constitui como um dos eixos estruturais do espaço, atuando como dispositivo de ativação, provocação, subjetivação e construção de saberes e sentidos, através da mediação, ações poéticas experimentais e encontros entre multiplicadores. Assim, a experiência dos encontros entre pessoas e arte no espaço expositivo impulsiona acontecimentos de diálogo e transversalidades entre arte e vida contemporâneas”, define Janis. “Somos seres constelares e sistêmicos, nos conjugamos incessantemente em nossos cotidianos, sendo atuantes nas diferentes situações em que estamos inseridos; somos unidade e pluralidade; parte e todo, simultaneamente”, completa.

 

UM MOVIMENTO POLÍTICO E ARTÍSTICO

Há quase um século, o pintor Belga René Magritte produziu uma de suas obras mais famosas: o quadro “C’est si ne pas une pipe” (Isto não é um cachimbo), uma pintura onde se vê um cachimbo e logo abaixo a frase que o intitula. O que a princípio parece um contrasenso é na verdade uma proposta de reflexão, não apenas sobre a arte, mas sobre representar. Em suma, o que se vê não é um cachimbo, mas uma imagem que o representa.

Por mais verossímil que seja, a fotografia, assim como as pinturas, também é representação da realidade, da sociedade em que vivemos. As imagens não são capazes de nos dizer o que é a favela. Todavia, conferem ao espectador uma senha mais honesta que os estereótipos e estigmas frequentemente imputados às periferias pelos meios de comunicação. Embora representativo e atravessado por subjetividades, a obra do IP nos revela um aspecto quase óbvio, mas por vezes negligenciado: a favela não é um habitat, mas um nicho onde a vida acontece e atravessa olhares em mil direções.

 

Um dos fotógrafos que integram a exposição, veri-vg, acredita que, em meio à torrente de imagens com que nos acostumamos a conviver, principalmente com o advento da internet, é preciso discutir mais as mensagens que se criam nessa difusão: “Espero criar imagens que dialoguem com questões sociais menos discutidas, que levem à valorização da auto estima, do fortalecimento de ideias, que falem da estética e cores para realçar a imaginação e também levar o espectador ao pensamento e ao caminho da contribuição social”.

 

Valda Nogueira, fotógrafa que também tem seu trabalho exibido na mostra, vê no seu ofício a possibilidade de contar uma história ou parte daquela história, através de uma foto que seja forte, porém simples e respeitosa para com as pessoas fotografadas. “As favelas, os espaços populares, as comunidades tradicionais merecem um olhar de carinho e livre de estigmas. Eu fotografo minha intimidade, mas também fotografo lugares que eu gosto de estar e também lugares que eu gostaria de compreender melhor. Fotografias contam histórias, e histórias nos inspiram, nos conectam, nos trazem um novo jeito de pensar e ver o mundo”.

Maria Simone Cordeiro e Fernanda Carlinda mostram as imagens do livro NÓS, nas quais estão retratadas. Bruno Morais voltou à Ocupação Sócio-Cultural Mama África, em São Domingos, Niterói, para retornar as imagens às famílias retratadas por ele Foto: Bruno Morais
Bruno Morais voltou à Ocupação Sócio-Cultural Mama África, em São Domingos, Niterói, e entregou o livro às fotografadas Maria Simone Cordeiro e Fernanda Carlinda Foto: Bruno Morais

Esse olhar diferenciado é parte dos ideais que movimentam o IP: a importância do caráter documental. O mundo se transforma e as representações permanecem. Nesse sentido, é significativo que o coletivo seja composto por vários profissionais oriundos de territórios populares, pois favorece um olhar mais generoso.

 

OLHARES

O livro é composto por 112 fotografias, das quais 50 foram selecionadas para a exposição na Maré. São duas experiências diferentes: nas últimas páginas do livro, é possível relacionar as fotos com as respectivas legendas e ler os fotógrafos, que dizem em algumas palavras, como olham para o que fazem. A exposição é um livro mais aberto, onde o visitante pode legendar, supor o porquê da disposição escolhida para os quadros e desinibir a válvula imaginária, através do encontro com os educadores artísticos do projeto Educativo.

 

Assim como no famoso quadro de Magritte, as palavras têm espaço em muitas fotografias do IP, sujeitas às significações de novos olhares. Por exemplo, na foto de Davi Marcos: uma moradora de rua e ao seu lado uma bolsa com a marca de uma das maiores empresas de agrotóxicos e sementes transgêneras do mundo; ou na de Gê Vasconcelos, que encontrou uma casa no Complexo da Maré onde “vende-se sonhos (5 por R$2)”.

 

Embora muitos trabalhos assumam caráter ativista, isso acontece no atravessamento de olhares do fotógrafo, no oportunismo. Parece ser mais uma possibilidade do que um dever. Político certamente é, mas transparecem principalmente a função poética que o olhar exerce. E encontra no cotidiano a beleza presente no comum. Tal qual poesia de Manoel de Barros, as fotos do IP resgatam o chão, as lajes, as ruínas, os moleques, as bitucas, as ausências.

 

Muitas vezes a fotografia vai captar coisas que o fotógrafo não viu, mas intuiu. Como o vento, que não se vê, mas se pode deduzir as consequências de seu movimento. O trabalho exposto em comemoração aos dez anos do coletivo ilustram nuances, aliando a técnica fotográfica ao oportunismo, à disposição e afeto dos fotografados, à beleza modéstia do cotidiano.

Jackson, tocador de
Jackson, tocador de “surdão”, no bloco de rua “inseto brabo”, recebeu o livro de seu fotógrafo, Léo Lima. Foto: Léo Lima

Acima de tudo, ou melhor, em tudo isso, captam potência. Uma potência nem sempre cívica, mas humana antes de qualquer coisa. Há fotos que miram os pés, as costas, ou os grandes olhos do pequeno Rafinha, que compõe a capa do livro e da exposição. Poesia, arte, política, cidade, amor, ativismo, fé e festa se embaralham na trajetória fotográfica dos integrantes do Imagens.

Todo esse processo é reconhecido e coroado. O Imagens do Povo já tem dois livros publicados, fizeram diversas exposições no Brasil e no exterior, tem um acervo com mais de 10 mil imagens essencialmente de espaços populares e conseguiram pautas de eventos grandes, como Rio +20, Festival Internacional de Circo, cobertura das eleições para o canal franco alemão ARTE e FLUPP. Em dezembro, realizaram a exposição “Imagens do Povo” na Fotogaleria Del Prado, em Montevideo, à convite do Centro de Fotografia de Montevideo. E participaram da exposição coletiva “Imagens da Escuridão e da Resistência”, no MAM.

 

Periodicamente, a Galeria 535, que fica no Observatório de Favelas, expõe trabalhos do Imagens ou de artistas que atuam com temáticas afins. O curso oferecido está para abrir vagas. Os interessados devem ficar de olho e acompanhar as publicações pelo site ou facebook.


A exposição “Nós” fica no Galpão Bela Maré  até o dia 28 de março. A visitação é gratuita, de terça a sábado, das 11h às 17h. O Bela Maré fica na rua Bittencourt Sampaio, 169, Maré, entre as passarelas 9 e 10 da Av. Brasil.

Abaixo, algumas fotos exibidas na exposição:

Bate-bola do Muquiço durante carnaval em Guadalupe. Rio de Janeiro, 2013 - Edmilson de Lima
Bate-bola do Muquiço durante carnaval em Guadalupe. Rio de Janeiro, 2013 – Edmilson de Lima
Despedida do campo da Paty, Nova Holanda, Complexo da Maré. Rio de Janeiro, 2012 - Gê Vasconcelos
Despedida do campo da Paty, Nova Holanda, Complexo da Maré. Rio de Janeiro, 2012 – Gê Vasconcelos
Luta pela moradia na Comunidade Beira Rio, em Manguinhos. Rio de Janeiro, 2013 - Luiz Baltar
Luta pela moradia na Comunidade Beira Rio, em Manguinhos. Rio de Janeiro, 2013 – Luiz Baltar

Júnior saltando poça d'água em Pitimbu. Paraíba, 2014 - Ratão Diniz
Júnior saltando poça d’água em Pitimbu. Paraíba, 2014 – Ratão Diniz

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