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A Rebelião de Stonewall e a LGBTIfobia, o racismo e a misoginia estruturais

Por Heloisa Melino (heloisa@observatoriodefavelas.org.br)*

O dia 28 de junho é celebrado como o dia internacional do Orgulho LGBTI+. Junho, por esse motivo, costuma ser um mês em que são discutidos temas ligados às sexualidades e identidades de gênero e também em que agências publicitárias colorem logotipos de empresas, vitrines e websites com as cores do arco-íris. Exceto nos países em que ser LGBTI+ é explicitamente perseguido pelo Estado. Apesar de no Brasil ser abertamente lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual ou intersexual não configurar crime, as LGBTI+ ainda são alvos de estigmas, discriminações e perseguições, a ponto de candidatos e políticos eleitos constantemente acionarem os pânicos morais  [1] que circulam em torno das sexualidades e identidades de gênero divergentes da norma como plataformas de campanha.

Mais grave do que isso é o fato de não haver em nosso país dados e estatísticas oficiais sobre LGBTI+ e essas existências serem silenciadas, invisibilizadas e até apagadas. Desde os registros de nascimento (especialmente no caso de intersexuais, que são mutilades ao nascimento), até os registros de óbito. Não se sabe quantas pessoas nascem intersexuais, não se sabe quantas LGBTI+ estão nas escolas, nas universidades, no mercado formal de trabalho. Também não temos dados fidedignos sobre institucionalização de crianças e adolescentes, internação psiquiátrica, encarceramento, sobre as vítimas de violência letal e não letal. As LGBTI+, no entanto, estão em todos os lugares, são vivas em todas as raças, etnias, credos, territórios e classes sociais e um dos graves problemas da política de negação dessas existências é a ausência de políticas públicas que busquem equalizar as desigualdades sociais. 

Pensando nisso, vamos aqui trazer a história dos acontecimentos que levaram à Rebelião de Stonewall, para em seguida trazer algumas linhas sobre a estruturação da sociedade mundial envolvendo a cisgeneridade e a heterossexualidade compulsórias, a inferiorização da mulher em relação ao homem e o racismo, para demonstrar a necessidade de uma prática política interseccional no desmonte das desigualdades sociais e sistêmicas.

Rebelião de Stonewall – histórias e agentes

28 de Junho é marcado como o Dia Internacional do Orgulho LGBTI+ em memória à Rebelião de Stonewall, que aconteceu nas primeiras horas desse dia no ano de 1969, no bairro de Greenwich Village, em Nova York. Nessa época havia poucos bares e boates LGBTI+ e esses lugares funcionavam na clandestinidade por causa de um estigma social muito grande, e em ilegalidade, pois eram também pontos de venda de drogas e prostituição. No bairro onde ficava Stonewall Inn tinha alguns outros pontos de encontro, a maioria voltada para homens gays brancos, mas ali era o reduto frequentado por “esquisites”. “Esquisites” eram, sobretudo, as pessoas latinas, negras, asiáticas, indígenas, ou seja, as que não eram brancas; as jovens em situação de rua, as lésbicas não-feminilizadas (caminhoneiras), homens gays afeminados, pessoas transexuais, Drag Kings e Drag Queens [2]. Assim como nos bares gays brancos, muites que frequentavam o local exerciam o trabalho sexual (que até hoje é criminalizado nos EUA). 

Esses lugares costumavam receber “batidas” policiais que tinham apenas o intuito de extorsão e violência, pois uma vez que os policiais recebiam seu “cachê”, a Máfia, em geral proprietários e responsável pela segurança dos locais, os reabria e as noites e madrugadas voltavam a fluir. Existia uma lei em Nova York que proibia o uso de três ou mais vestimentas “do sexo oposto”, então com frequência, quando havia batidas policiais nesses redutos de “esquisites”, as transexuais, caminhoneiras e afeminados passavam por revistas, inclusive íntimas e inclusive com violências sexuais. Nessas batidas a polícia acendia as luzes, levava todas as pessoas para a rua, trancava a porta com um cadeado e ordenava: “Bichonas para cá, sapatonas para cá, esquisites para lá. […] Se você não tivesse três peças de roupa masculina, você iria para a cadeia. Assim como uma lésbica caminhoneira tinha que ter três peças de roupa feminina ou  iria pra cadeia.”, relata Sylvia Rivera, uma mulher transexual lésbica porto-riquenha, que na época era Trabalhadora Sexual e frequentava o bar [3].

Há várias versões sobre o que ocorreu na madrugada de 28 de junho no Stonewall Inn, e não se sabe ao certo quem foram as pessoas que revidaram primeiro as agressões. Muitas dessas versões ressaltam que uma lésbica caminhoneira vestida de homem foi empurrada por um policial e deu um soco na cara dele, o derrubando. Foi então algemada e arrastada para uma viatura. Enquanto ela se debatia contra eles, tentando se defender, gritava com a multidão que assistia “Vocês não vão fazer nada?!” – muitos identificaram essa lésbica como Stormé DeLarverie, inclusive ela mesma [4]. Stormé DeLarverie era uma mulher lésbica birracial, filha de mãe negra e pai branco, conhecida por suas performances como drag king.

Stormé DeLaverie em 1994
Stormé DeLaverie em drag king, ao meio na foto

Sylvia conta que, naquela semana, o bar Stonewall Inn, já havia passado por uma batida. Era a segunda noite em que a polícia chegava e dessa vez a população reagiu. Começaram a atirar moedas nos policiais gritando “aqui a propina de vocês, seus porcos”. Os policiais se amedrontaram e pediram reforços, mas a situação escalonou. Contam versões da história que Marsha P. Johnson, uma transexual negra, bissexual e que também era Trabalhadora Sexual teria sido a primeira a atirar um tijolo contra os policiais e Sylvia diz que ela atirou o segundo Molotov. 


Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera

A revolta cresceu, pois quando souberam que isso estava acontecendo, as pessoas das boates e bares próximos saíram e se uniram à turba de stonewall. Mulheres e homens heterossexuais que moravam na área e eram contra a violência policial também se juntaram à rebelião. Quando os reforços policiais chegaram, cerca de 45 minutos, a rua já estava cheia de Divas, que cantavam: “Nós somos as garotas de Stonewall/ nós usamos nossos cabelos em cachos/ nós usamos nossos jeans/acima de nossos lindos joelhos/ nós mostramos nossos pelos púbicos”.

Os policiais vieram de forma truculenta, mas quanto mais batiam, mais as pessoas revidavam, pois estavam fartas daquela situação e queriam liberação. 

No dia 28 de junho de 1970 aconteceu o Dia da Liberação com uma grande assembleia na rua onde no ano anterior haviam se passado esses eventos. Ocorreram protestos simultâneos em Los Angeles e Chicago, manifestando o Orgulho Gay. Esses acontecimentos impulsionaram o movimento por Direitos Civis de LGBTI+, mas as pessoas transexuais ficaram para trás quando se propôs o Projeto de Lei de Direitos Gays. Sylvia Rivera conta da revolta dela e de suas companheiras trans e do silenciamento que passaram quando os homens gays, que tinham mais projeção e maior poder aquisitivo, inclusive proibiam o ingresso delas em prédios onde aconteciam as Assembleias. As pessoas trans foram deixadas para “depois”, para agilizar a aprovação do Projeto que, ainda assim, levou 17 anos para ser aprovado. A homossexualidade foi retirada do Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM), produzido e editado pela Associação de Psiquiatria Americana (APA), em 1973 e da Classificação Internacional de Doenças (CID) em 17 de maio de 1990. Quanto a transexualidade, apenas em 2019 é que deixou de ser considerada como transtorno mental pelo CID.

LGBTIfobia, racismo e misoginia estruturais

É importante ressaltar que a LGBTIfobia não é uma violência menor ou menos estrutural do que o racismo, sexismo, a desigualdade de classe e origem. A estrutura mundial de poder se estabeleceu a partir da escravização, da exploração do trabalho, da invasão, tomada e privatização de terras visando acumulação de riquezas para as pequenas – mas poderosas – classes dominantes. Junto a isso, também foi imposto o  “sexo”, como o conhecemos hoje, e uma única via de expressão de sexualidade. 

A diferenciação entre seres de uma mesma espécie a partir do dimorfismo genital criou um binarismo dicotômico, em que só existem homens e mulheres/macho e fêmea e são “sexos opostos”. Alegando que o objetivo dessa diferenciação era a reprodução, ao mesmo tempo a heterossexualidade foi imposta como a única forma de expressão de sexualidade possível e o sexo só deixava de ser pecaminoso quando voltado para a reprodução. Assim, a cisgeneridade e a heterossexualidade foram construídas como “naturais” e “biológicas” [5]. Como o sexo voltado para a reprodução era o único “permitido”, as mulheres foram perseguidas por seus conhecimentos de medicinas naturais associadas à prevenção da gravidez e ao abortamento quando acontecia gravidez indesejada. Ao mesmo tempo, o estupro de mulheres de classes pobres era descriminalizado [6].

A normatividade cisgênera e heterossexual, portanto a cis-heteronormatividade, se reforça ao mesmo tempo que a inferiorização das mulheres e é também uma concepção racista e etnicista sobre sexo-gênero e sexualidade. Porque havia – e ainda há – povos que conhecem sexo, gênero e sexualidade a partir de outras concepções [7]. E porque a cis-heteronormatividade foi também imposta a partir do pressuposto de que um dos fatores que colocava brancos-europeus como os mais evoluídos da espécie seria a nítida distinção entre homens e mulheres e seu comportamento moralista-cristão em relação à prática sexual [8], que também envolvia como se relacionavam com o corpo e com o prazer [9]. 

A Rebelião de Stonewall é, certamente, um marco no histórico de luta LGBTI+, que foi protagonizado por pessoas cuja expressão e identidade de gênero estavam longe da norma e que não eram brancas. Sem dúvida, se hoje as LGBTI+ podem demonstrar  o orgulho de serem quem são, falando em seu próprio nome, e demonstrando publicamente suas identidades,  expressões e afetos, é porque houve décadas e séculos de muita luta. Ainda há muites LGBTI+, no entanto, que não podem, não conseguem ou não estão “autorizadas” a essas expressões e  demonstrações públicas. O Brasil ainda é o país em que mais pessoas LGBTI+ são assassinadas no mundo e, dentre elas, são mais vitimizadas as LGBTI+ jovens, negras e cuja expressão de gênero mais se dissocia das expectativas sociais sobre como deveriam se comportar “mulheres” e “homens” [10]. 

A luta contra a LGBTI+fobia não é menos urgente ou de menor importância. Da mesma maneira, se estamos efetivamente interessades em acabar com a LGBTIfobia, essa luta tem que ser ao mesmo tempo e junto do combate ao racismo, à misoginia, à exploração do trabalho e ao acúmulo de riquezas, que também são raízes e estruturas da LGBTIfobia. 

Aí, sim, mais do que uma Rebelião, estaremos buscando uma Revolução. Em todas as cores. 

* Heloisa Melino é pesquisadora do Programa de Direito à vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas, ativista lésbica feminista, Doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ e Especialista em Políticas Públicas pelo IPPUR/UFRJ.

Referências
[1] Para históricos políticos acionando pânicos morais, veja: RUBIN, Gayle Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. In: ABELOVE, Henry; BARALE, Michèle e HALPERIN, David. (Eds.) The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova York: Routledge, 1993. Disponível em português em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1229/rubin_pensando_o_sexo.pdf

[2] Drag Kings e Drag Queens são artistas que fazem performances masculinas e femininas, respectivamente. 

[3] RIVERA, Sylvia. Sylvia Rivera’s Talk at LGMNY, June 2001 Lesbian and Gay Community Services Center, New York City. CENTRO Journal, v. XIX, nr I, spring, 2007.

[4] TASHJIAN, Rachel. A Brief History of Stormé DeLarverie, Stonewall’s Suiting Icon. GQ Magazine, 27 de junho, 2019. Disponível em https://www.gq.com/story/storme-delarverie-suiting

[5] LUGONES, Maria. “Heterosexualism and the colonial/modern gender system”. Hypatia vol. 22, n. 1, p. 186-209, 2007.

[6] FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

[7] ALLEN, P.G. (1986) The sacred hoop: Recovering the feminine in American Indian traditions. Boston: Beacon Press.

FERNANDES, F L et al. (2019) Pessoas LGBTI+ em privação de liberdade: rumo a agendas participatórias e inclusivas de pesquisas e políticas nas periferias globais. Uma perspectiva do Brasil e da Índia. In: Ferreira, G and Klein, C. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens pela justiça criminal. Porto Alegre: Devires.

OYĚWÙMÍ, O. (1997). Invention Of Women: Making An African Sense Of Western Gender. Minneapolis: University of Minnesota Press.

OYĚWÙMÍ, O. (2002). Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the Challenge of African Epistemologies. Jenda: A Journal of Culture and African Women Studies, 2.

[8] Schuller, K. (2017) The biopolitics of feeling: race, sex, and science in the nineteenth century. Durham: Duke University Press.

[9] McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Trad. Plínio Dentzien. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

[10] International Lesbian and Gay Association (ILGA) State-Sponsored Homophobia 2019, 13th Edition. [online] Genebra: ILGA, 2019. Disponível em https://ilga.org/state-sponsored-homophobia-report

ANTRA – Dossiê Assassinatos e Violêcias contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf

PERES, Milena C., SOARES, Suane F., DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil de 2014 a 2017. Disponível em https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf

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