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As desigualdades no processo de imunização para o homem negro na pandemia de Covid-19

Homens negros de territórios populares são os que menos acessam os serviços de saúde, por isso, torna-se necessário pensar estratégias de mobilização e inclusão para esse público.

Texto: Rudson Amorim*

Em 2020 o mundo presenciou a maior crise sanitária, que acarretou em uma das maiores crises humanitárias de todos os tempos. A pandemia de Covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, causou mais de 6 milhões de mortes ao redor do mundo e cerca de 700 mil mortes no Brasil até o atual momento.

Além das mortes, a pandemia causou danos irreparáveis à economia global, dificultou o acesso à saúde e serviu para escancarar as desigualdades presentes na sociedade.

Desde o início da pandemia, os movimentos sociais, organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e coletivos populares apontam que, para as classes menos favorecidas e para as minorias sociais, o impacto da Covid-19 seria ainda maior.

Sendo assim, muitas dessas instituições reafirmaram a necessidade da transparência na divulgação da informação, incluindo os recortes de raça e gênero nos dados divulgados sobre a pandemia. Essa mobilização teve como principal objetivo prevenir as mortes do público mais afetado pelos óbitos na pandemia: a população negra e periférica.

Foto: Lucas Neves

Dados levantados e divulgados pelo Instituto Pólis apontam que, em 2021, a população negra morreu cerca de 1,5 vezes mais do que a população branca. Para ser mais específico, a projeção é de que 55% das pessoas negras internadas em estado grave por covid-19 nos hospitais vieram a óbito. Enquanto apenas 34% das pessoas brancas foram impactadas pela doença nessas mesmas condições.

Entretanto, até hoje os ministérios e as secretarias de saúde não divulgaram os dados relacionados a raça e gênero na contagem de óbitos, o que dificultou a criação de políticas para tentar diminuir a taxa de letalidade da doença para esse grupo. Vale lembrar que desde 2017 já existe a portaria n° 344, que obriga o Ministério da Saúde a incluir dados relacionados a raça/cor em todos os documentos produzidos pelo órgão.

Mesmo depois de 2 anos de pandemia, as informações referentes a raça e gênero ainda continuam sendo completamente ignoradas pelos órgãos públicos. Agora se encaminhando para o fim da pandemia, através do processo de imunização em massa da população, as secretarias de saúde continuam a não coletar essas informações durante a campanha de vacinação. A ausência desses dados faz com que a população negra ainda continue vulnerável à doença, sobretudo no Rio de Janeiro, onde a maior parte da população negra está situada nas regiões com o menor IDH da cidade, como nas favelas e periferias, onde os serviços de saúde e as condições de moradia são precários de maneira geral, o que faz com que esse público esteja mais exposto a pandemia.

Dados levantados pelo Observatório de Favelas presentes na 12° edição do Mapa Social do Corona, apontam que os bairros com a maior concentração de pessoas negras são os lugares com o menor índice de vacinação contra a covid-19.

No bairro de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por exemplo, – que foi considerado um dos bairros do epicentro da doença entre boa parte de 2020 – é um dos territórios com maior concentração de pessoas negras da cidade, algo que varia entre 64% a 83%, e a taxa de vacinação na primeira dose não passou dos 78%. Já nos bairros concentrados na Zona Sul, onde a população negra representa 38%, a taxa de vacinação da primeira dose chegou a 97%.

Isso demonstra que, no Brasil, sobretudo no Estado do Rio de Janeiro, a pandemia de covid-19 não é apenas um problema de saúde, que tem como população de risco idosos e pessoas com comorbidades, mas sim um problema de grandeza sócio-racial, que impacta diretamente as populações negras, indígenas e das periferias e favelas.

Foto: Lucas Neves

Quando aplicamos o recorte de gênero e raça nos dados da vacinação, percebemos que o homem negro foi o mais afetado diretamente pela pandemia. Dados apresentados pelo Observatório de Favelas mostram que no Rio de Janeiro, o perfil mais afetado nos óbitos foram os homens negros situados nas regiões periféricas da cidade.

Observando a campanha de imunização, ainda podemos perceber que esse público continua sendo o mais vulnerável, já que o público que menos se imuniza no Brasil de maneira geral são os homens.

Isso é explicado por diversos fatores que vão desde o machismo estrutural, até a adesão maior desse público a temas relacionados a fakenews e o negacionismo científico nos últimos anos.

Conversei com alguns profissionais de saúde que atuam na atenção primária, ou seja, de maneira mais aproximada da comunidade de maneira geral. Para esses profissionais, que inclusive são homens pretos, a figura do homem negro de fato é o perfil que menos acessa os serviços básicos de saúde, logo se previnem e se vacinam menos.

Para o Moredson que é Agente Administrativo na Coordenadoria de Atenção Primária 5.3 (que abrange os bairros de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba), localizada na Policlínica Lincoln de Freitas Filho, em Santa Cruz, a dificuldade de acesso dos homens a serviços de saúde de maneira geral pode ser explicada de várias formas:

“O acesso de saúde para eles é mais limitado. Por conta de diversos fatores. Uma pauta cultural porque o homem não adoece, o homem é sempre forte. Também por conta da empregabilidade. O patrão não libera o funcionário para fazer consulta, que acaba tendo medo de perder o emprego. Às vezes não tem médico, a equipe não está completa. Isso vai criando resistência ao acesso e param de procurar os serviços de saúde.”

Além desses fatores, Moredson também identifica um problema ainda maior para o processo de imunização entre o público masculino nas regiões periféricas: o negacionismo e a propagação de fake news.

“O maior incentivo de vacinação dos homens daqui do bairro foram as empresas que obrigaram os funcionários a tomar as vacinas. Se não fosse isso, muitos não tomariam nem a primeira dose. Acho que inclusive o maior impacto foram as fake news, para mim que estou lá na ponta. Ainda mais por conta dos possíveis “efeitos colaterais” da vacina. Isso impactou muito.”

Outro limitador para que a campanha de vacinação se torne efetiva para esses grupos é a ausência de políticas de saúde voltadas especificamente para esse público. Desde 2008 existe o Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, que garante inclusive que o homem possa fazer pelo menos uma consulta anual de prevenção à saúde com dispensa do trabalho.

Entretanto, as unidades de atenção primária não incluem esse programa como uma meta, como explica Ismael Costa, Enfermeiro e Professor de Saúde Coletiva na Universidade Estácio de Sá.

“O nosso sistema de saúde tem uma tradição de priorizar o atendimento de mulheres e crianças. Depois, quando vem a questão dos programas de hipertensão e diabetes, começou a se priorizar a população idosa. Essas foram durante décadas as populações prioritárias dos serviços de saúde. Se você chega numa unidade básica de saúde hoje, é essa população predominante. Tem um percentual muito pequeno de homens na faixa etária adulta. No ano de 2008, o Ministério da Saúde criou uma Política Nacional Integral de Saúde do Homem, voltada justamente para que os serviços de saúde e as secretarias de saúde começassem a criar estratégias para tentar trazer população masculina para o serviço de saúde. Quando se trabalha em atenção básica o gerente das unidades trabalha com metas e indicadores. Só que essas metas e indicadores nunca são voltadas para a questão do homem. Estão sempre focadas nas doenças crônicas, doenças infecciosas, no pré-natal… Então o gerente naturalmente vai direcionar suas metas nesse sentido. Acaba que a gente só lembra da saúde do homem no tal do Novembro Azul, que muitas vezes pensa só no câncer de próstata.”

A ausência de metas e indicadores sobre a saúde do homem faz com que esse sujeito seja um completo invisível para a atenção primária. Logo, o foco das campanhas de imunização e prevenção, como a campanha de imunização da covid-19, acaba não sendo justamente o público que tem a maior dificuldade no acesso à saúde.

Quando aplicamos o indicador de raça, a preocupação fica ainda maior. Homens negros possuem ainda mais dificuldade de acesso a serviços de saúde. Mesmo sendo os principais afetados por várias doenças como diabetes, hipertensão, doenças sexualmente transmissíveis e a própria Covid-19, o foco das campanhas de prevenção acaba não sendo esse público.

Foto: Lucas Neves

Para Ismael, mesmo existindo políticas que pensem a saúde da população negra e do homem negro, ainda estamos muito atrasados na implementação de práticas efetivas para a inclusão desse grupo na saúde.

“Desde 2011 existe a Política Nacional da Saúde da População Negra. Essa política traz também o recorte das desigualdades sociais. Traz informações diferenciadas para dados como cor, etnia para que a gente possa entender as desigualdades. Então essa política quer dar visibilidade a isso. Justamente para mostrar que é preciso também ter esses números para saber que as nossas ações estão de fato conseguindo combater essa desigualdade. Então a política tá aí, ela existe. O que a gente precisa é criar mecanismos de indução, criar metas para orientar políticas. A criação das metas operacionais é que vão fazer com que essas políticas sejam efetivadas de fato. Mas até o momento atual, não avançamos nisso. Pelo contrário, o debate sobre o racismo na saúde ainda não é enxergado de maneira séria. Logo, as políticas públicas não são aplicadas.”

Já para Kelson Moraes, Agente Comunitário de Saúde na unidade Clínica da Família Faim Pedro (Realengo, Rio de Janeiro), a realidade de políticas públicas que incluam a saúde do homem negro é um pouco mais dura.

“Há um ganho nos últimos anos na saúde das pessoas negras, mas eu penso que as políticas voltadas para a população negra ainda é muito defasada. Sobretudo quando se pensa na especificidade do homem negro. O homem negro acaba sendo um número considerável em várias doenças como hipertensão, diabetes, doenças do coração e etc. Porém, fala-se muito pouco sobre a saúde do homem negro, ainda mais quando se fala em saúde mental.”

Nesse sentido, é mais do que urgente a mobilização dos órgãos públicos para a garantia de direitos e programas já existentes para essa população. Pois se antes da pandemia já era difícil mobilizar esse público, agora com a era da desinformação o desafio se tornou ainda maior, sobretudo nas regiões mais periféricas da cidade, onde as fake news encontram um terreno fértil para se propagar, como analisa o professor Ismael:

“Eu trabalho na AP 5.3, que abrange os bairros de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba. Santa Cruz é uma das áreas que mais têm cobertura da atenção básica da cidade, com acesso a 26 unidades básicas de saúde. E historicamente nós tínhamos boas coberturas vacinais. Por isso me surpreendeu perceber que em Santa Cruz estamos tendo tão pouca adesão às vacinas. Eu atribuo muito a todo esse processo de desinformação desses últimos anos. Porque nós temos ali profissionais para o atendimento, unidades para dar a vacina e nós tínhamos altos índices de vacinação. Então isso me surpreende muito. Eu não sei como conseguiu desconstruir uma cultura de vacinação tão forte, em tão pouco tempo e com tanta facilidade.. é um desafio que eu não tenho resposta. Teremos muito trabalho pela frente.”

Entretanto, mesmo com tantas desigualdades e dificuldades no processo de imunização, podemos encontrar uma solução para o avanço da vacinação entre esses públicos, como apontam nossos entrevistados.

Para Kelson, uma estratégia eficiente para a mobilização desse grupo seria através de campanhas midiáticas que trouxessem a figura do homem negro no centro.

“Eu enxergo que através da mobilização, principalmente através da identificação, nós podemos alcançar mais esse público. Acho que campanhas com mais representatividade faz com que as pessoas se identifiquem e busquem se informar de forma mais próxima.”

Já para Moredson, é necessário que haja uma mobilização coletiva entre os mais diversos setores da sociedade.

“Acredito que uma boa estratégia de mobilização para a vacinação desses grupos seria como aconteceu no primeiro momento, se aliando com associações de moradores, igrejas, centro espíritas… para que junto com as unidades de saúde conscientizar as pessoas. Porque é nesses espaços que de fato está circulando a população. Todos os setores precisam se juntar na luta contra o negacionismo.”

É necessário que o Ministério de Saúde juntamente com as secretarias assumam um compromisso público na garantia de direitos que já foram conquistados. E além disso, pensem soluções para combater as desigualdades presentes no acesso à saúde para os grupos mais vulneráveis socialmente.

Enquanto os dados de raça e gênero não forem divulgados e não forem planejadas ações efetivas para a imunização desses grupos, a população negra continua sendo a mais vulnerável não só para a Covid-19, mas para todas as violências e negligências que o Estado já direciona para nós, homens negros periféricos.

 

*Rudson Amorim é fotógrafo, comunicador popular, agente cultural e realizador audiovisual. Estudante de Comunicação Social – Rádio e TV pela UFRJ, atualmente produz o podcast “Novo Oeste”, é coordenador do IFHEP e membro do OJUN – Observatório de Juventudes Sobre Direitos e Saúde – do Fundo de população das nações unidas (UNFPA). Rudson foi selecionado através do “Como se Proteger do Coronavírus – Programa de Reportagem”.

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