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Favela, direitos e democracia: os 20 anos do Observatório de Favelas

Iniciativa virtual marcou aniversário da instituição e contou com convidados especiais para dialogar sobre fortalecimento da democracia e redução das desigualdades

O frenesi das motos, pessoas e comércios que circundam a Rua Teixeira Ribeiro, na Maré, representa apenas uma parte da rotina dos moradores da Nova Holanda, uma das favelas que integram a Maré. E nessa mesma rua, um espaço de portão azul céu chama a atenção por quem pisa a primeira vez por ali. Estamos falando do Observatório de Favelas, organização da sociedade civil que atua diretamente na redução das desigualdades e produção contínua de conhecimento há 20 anos.

Fortalecido por uma rede de ativistas, pesquisadores, profissionais e mobilizadores, o OF constitui-se desde 2001 como uma ponte para assegurar caminhos entre sujeitos e sujeitas de múltiplas perspectivas e formações. Para celebrar essa trajetória, dois dias do anual seminário de festejo pela revolução solar do Observatório rege a comemoração de forma assertiva e com uma programação recheada com um dos pontos que a equipe mais preza: o diálogo. Sendo assim, pessoas chaves na construção desses 20 anos, além de ativistas pela luta e garantia dos direitos humanos estiveram presentes para uma troca de experiências.

Coletividade em prática

Durante a abertura, com mediação de Érika Lemos e Aruan Braga, três co-fundadores – Elionalva Sousa, Jailson Silva e Jorge Barbosa – tiveram espaço para sistematizar os anseios que construíram as bases do OF desde o seu princípio e seguem até hoje. “A nossa epistemologia é periférica. Ela está sustentada numa perspectiva negra, da nossa ancestralidade e que leve em conta os interesses fundamentais de uma grande maioria de sujeitos”, afirmou Jailson Silva. Ele apontou ainda que a organização trabalha em um sentido de revolução, com a favela e periferia sempre em pauta como potência.

Elionalva Sousa introduziu a sua fala citando alguns dos nomes de pessoas que foram essenciais para a construção do OF, além de contar como é a jornada de manter uma organização social. “O desafio sempre foi muito grande. Independente de ter muitos projetos ou poucos. Historicamente as nossas ações têm sido feitas a partir de apoios e projetos, não da instituição como um todo. Então temos sempre o desafio do dinheiro que não chega para pagar uma atividade ou demandas que a própria estrutura que a organização tem. Mas também é muita alegria que celebramos, quando a prestação de contas é aprovada, cada parceiro etc. São pontos que são colocados porque também é uma organização que está sempre mudando”, pontuou Nalva.

Jorge Barbosa, similar à fala de Jailson, foi enfático ao discorrer sobre a produção de conhecimento para além dos muros da universidade. “A produção de conhecimento é também uma disputa de imaginários do mundo, da vida. É de sentido, de horizonte, de agenda política. Na verdade, essa foi a matriz do nosso pensamento. Favelas e periferias sempre foram objetos de estudos e os moradores nunca foram entendidos como potência de produção de conhecimento, de fazeres e saberes. É essa epistemologia, de incorporar a questão racial, de gênero, de cultura, de comunicação etc. O Observatório vem buscar juntar essas coisas que são corpóreas, simbólicas e territorial”, ponderou Jorge.

Na mesa seguinte, Quais as potências vão reduzir desigualdades a partir de favelas e periferias nos próximos anos?, sob mediação de Thais Gomes, três mulheres que exalam sabedoria apresentaram perspectivas para um olhar futuro com maior participação de pessoas negras, mas sem desconsiderar toda luta feita por seus ancestrais. Marcelle Decothé, coordenadora de Incidência do Instituto Marielle Franco e co-fundadora do movimento Favelas Na Luta, reiterou o papel das lideranças comunitárias como propulsoras na superação da desigualdade social e na democracia.

“A potência do existir. Nós temos a capacidade de criar historicamente as rotas de sobrevivência disso que chamamos de Estado Brasileiro. A periferia já nasce como uma fuga. Essa potência, apesar desse processo que nos acompanha desde o início da formação social desse país, a favela e periferia tem a capacidade de subverter e criar essas rotas de fuga. Exemplo disso, que venho falando em vários espaços, é o quadro de enfrentamento à pandemia. As lideranças e o espaço das cidades que lideraram o movimento para frear a insegurança alimentar, a expansão do vírus, do tiro e da fome, foram as favelas. Os defensores de direitos humanos, as mulheres negras – principalmente, as LGBTs, as que estão nas periferias de todo o Brasil, foram as que lideraram a agenda de saída da crise. E ainda estão pautando”, pontuou.

Em consonância, Dandara Rudson, co-fundadora e Coordenadora Executiva do Coletivo Amazônico LesBiTrans e fundadora do ZarabatanaINFO – laboratório de cyberativismo, afirmou que o valor que rompe com limites geográficos é importante na defesa dos direitos humanos. “Os 20 anos do Observatório é também sobre conexões, sobre trocas. Nós estamos nos encontrando porque essa articulação política existe e vem sendo construída há muito tempo. O que nos reuniu foi a nossa ancestralidade, nossas articulações de muitos anos. Não podemos diminuir isso por ser online. Os 20 anos são sobre vida, é sobre sobrevivência. Se estamos aqui comemorando, é porque tem uma construção secular e gigantesca que já vem sendo engendrada. Somos o resultado de tudo isso que deu certo. Não podemos romantizar e esquecer todo mundo que tombou nesse processo ou todo o sangue e suor que foi derramado nesse processo”, exclamou.

A pedagoga e ativista negra, lésbica e feminista, Benilda Brito, comentou sobre os aprendizados e o contexto da coletividade. “Soldado pra nós é Ogum. E na nossa cosmopercepção, ele é um soldado do bem. É aquele que não temos medo de encontrar na favela. Igual Cosme e Damião, que está chegando a festa. Correr atrás de bala e não a bala correr atrás da gente, como acontece tanto nas periferias onde o alvo está apontado para as balas perdidas. Pensar nas potências para mim é pensar no afrofuturismo, que passa pela tecnologia, pela inovação, pela arte e pela ciência. Eu trago como filosofia. Ele quer tratar de negros vivendo no futuro. É conseguir imaginar isso, que os racismos não nos permite sonhar”, elucidou.

Quais as potências vão fortalecer a democracia a partir de favelas e periferias nos próximos anos?

No segundo dia, a Coordenadora de Comunicação do Observatório, Priscila Rodrigues, apresentou uma fala necessária sobre construção coletiva, com muitas mãos e pessoas envolvidas. Assim, ela recebeu Jefferson Barbosa, Ana Carolina Lourenço e Lúcia Xavier.

O integrante do PerifaConnection, do Voz da Baixada e estudante de Jornalismo na PUC-Rio, Jefferson ponderou que para olhar para o futuro, é necessário antes pensar nos grupos que vieram antes. “Reverenciar a todo mundo que vem antes. De todas as maneiras, somos continuidade desse processo. A partir de todas essas ideias de estratégia, quando a ideia de democracia não era para todos, nós construímos essa realidade paralela possível. Das irmandades, dos Quilombos, depois a partir dos coletivos – quando passamos a ter uma maior participação dos jovens negros. Quando olhamos para esse futuro, estamos tentando entender como nos manter vivos. Nós precisamos conseguir pensar nessa perspectiva, de como não perder nossas conquistas até aqui”, elucidou.

A socióloga Ana Carolina Lourenço, iniciou relembrando uma entrevista feita por Lúcia Xavier, uma das integrantes da mesa, e também sintetizou o que entendemos como estado democrático de direito. “Muito da nossa própria maneira de entender como construir políticas mais participativas, como a gente faz as juventudes se engajar nos debates, as mulheres negras acessem o debate. Isso é numa dimensão baseada na ideia que falta algo, que precisamos nos capacitar para fazer esse difícil debate de participação. Eu acho que o mais incrível, que foi apresentado nessa entrevista e que talvez seja a principal contribuição epistemiológica dos movimentos negros das Américas, que também seja o principal legado que levamos no Mulheres Negras Decidem, é a ideia de que não nos falta nada. Não nos falta capacidade de decidir, nós temos uma grande sofisticação analítica, propositiva e capacidade de se articular. O que existe são barreiras e um sistema muito bem construído e pensado para que esses espaços não sejam ocupados”, pontuou Ana Carolina, que é co-fundadora do Movimento Mulheres Negras Decidem

Complementando, Lúcia Xavier, ativista de direitos humanos das mulheres negras e co-fundadora  e coordenadora geral da CRIOLA, refletiu sobre como os movimentos negros e defesa da democracia estão pautados em uma noção coletiva de atuação. “Essa questão me tira um monte de ideias. Eu começaria dizendo que há sujeitos políticos que se constituem nas sociedades que acabam tendo o sentido de representação, mas nunca e nem ninguém no campo racial fez nada sozinho. Nós subimos no ombro de alguém para poder nos catapultar para cima, no sentido de fazer mudanças. Não há nenhuma ação política que foi feita apenas por uma pessoa. Há quem se sobressaia não apenas pela sua personalidade e contribuição, mas porque tem cordeiros que vão ao sacrifício. E isso, não quer dizer morrer em vão. Quer dizer se posicionar para fazer a diferença. Nunca estamos só, mesmo quando estamos literalmente caminhando com nossos próprios pés”, finalizou.

As próximas etapas do aniversário do Observatório seguem nos microprojetos que estão sendo desenvolvidos pelos eixos da organização. Que tornam a festa completa e para além das quatro horas de seminário. O eixo de comunicação, desenvolveu o curso Malungas – Laboratório de Narrativas para Meninas Negras, uma formação para meninas negras de 14 a 19 anos e moradoras de favelas e periferias; O de Políticas Urbanas, em conjunto ao Imagens do Povo, espalharam pela cidade as produções de 16 fotógrafos que integraram a oficina Corpo Morada — Favela como Patrimônio da Cidade; O de Educação, disponibilizou 5 vídeos de depoimentos de ex-bolsistas do projeto Conexões de Saberes e a live “Conexões de Saberes – OF 20 anos”; O de Arte e Território, propõe uma ação que integre os dois equipamentos culturais geridos pelo OF, o Galpão Bela Maré e a Arena Carioca Dicró; Para o futuro, são aguardados ainda um Slam e colagem de lambes, do eixo de Direito à Vida e Segurança Pública e uma Publicação de 20 anos de atuação do Observatório de Favelas.
Você pode acompanhar o Seminário #OF20Anos em nosso canal do youtube.

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