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Planeta Fome – O retrocesso do Brasil e o direito à alimentação básica e segura

Reportagem: Gabrielle Araujo (gabrielle@observatoriodefavelas.org.br)
Arte gráfica: Marcella Pizzolato (marcella@observatoriodefavelas.org.br)

 

Os impactos da pandemia de COVID-19 são refletidos em diferentes âmbitos da rotina de todos os brasileiros, principalmente para os 19 milhões que passam fome hoje no país. Resultado de uma política que caminha em corda bamba no que diz respeito à garantia de direitos básicos à população, o retrocesso senta-se à mesa para servir um cenário de insegurança alimentar e nutricional. Esse é o planeta fome.

Em paralelo a isto, desde o início da pandemia em março de 2020, lideranças comunitárias e organizações da sociedade civil, articulam-se em diversas frentes para garantir que o alimento chegue ao prato de quem precisa. Na pauta da mobilização, entra uma agenda pública de urgência para assegurar o direito à alimentação saudável e de qualidade para as populações em situação de maior vulnerabilidade social. Esse é o caso da campanha de arrecadação de cestas básicas feita pela A Voz do Lins, centro de inteligência comunitária, de inovação social e desenvolvimento sustentável, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro.

“A gente vem acompanhando um crescimento no número de famílias sem nenhuma renda. Isso eu incluo as famílias que viviam trabalhando informalmente e também as que perderam o vínculo empregatício nos meses que decorreram da pandemia até hoje. Por mais que no final do ano passado pra cá tenha reduzido um pouco, muito por causa dos empregos gerados no final do ano, os temporários, as coisas continuam muito críticas mesmo. Tem muita gente sem recurso, sem acesso ao auxílio emergencial, sem acesso a nenhum tipo de suporte governamental. E são essas pessoas que queremos tentar atender com a nossa campanha”, pontua Rafael dos Santos Sousa, formado em Serviço Social, pós-graduando em Economia e Gestão da Sustentabilidade pelo Instituto de Economia da UFRJ e integrante d’A Voz do Lins.

A campanha teve início em 26 de março de 2020 e até hoje continua a angariar recursos para atender às famílias da região. Porém, no segundo semestre do ano passado, foi registrada uma diminuição nas doações dos alimentos para as cestas básicas. Contudo, mesmo com a queda, a demanda das famílias continua em crescimento exponencial. Rafael pontua que o trabalho é feito em parceria com as associações de moradores das favelas que integram o Complexo do Lins – sendo 12 em seu total. De março a setembro de 2020, foram 4000 famílias atendidas, nos últimos meses, o número caiu drasticamente, e totalizam mais de 300 famílias que receberam as cestas básicas.

“De setembro do ano passado pra cá, tivemos um retorno substancial das doações. Foi muito grande. Está bem crítico em relação às doações. Não temos nenhum grande parceiro, nenhuma empresa. São pessoas que seguem a Voz do Lins e doam, que confiam na gente e depositam dinheiro na nossa conta ou doam alimento. Estamos tocando a campanha com muita dificuldade, mas estamos tocando”, acrescenta.

Entre os desafios para que essa iniciativa continue a acontecer, Rafael, que também é diretor, presidente e fundador do Instituto de Desenvolvimento Sócio Cultural e Econômico de Favelas (DESCE FAVELA), pontua a dificuldade no transporte e também a equipe que é reduzida, mas gigante em seu propósito.


Rafael Santos integra organização que arrecada desde março de 2020 alimentos para os moradores das 12 favelas que integram o Lins. Foto: Bê Lima.

“Muita gente que doava no ano passado, também teve uma queda na renda. Isso dificulta, porque as pessoas não têm as mesmas doações que tiveram no ano passado. A questão da logística também. Somos uma campanha pequena. São pouquíssimas pessoas que ajudam, sou eu e mais três e nenhuma tem carro. Então contamos com a ajuda das pessoas quando têm disponibilidade em nos ajudar a buscar as doações. Muitas vezes temos que investir em carros por aplicativo para ficar indo para lá e pra cá e nem sempre temos esse recurso todo para ficar gastando, além disso é um dinheiro que a gente pode usar para comprar alimento”, comenta.

Não muito distante da região onde o Lins está localizado, as mobilizações no Alemão, também na Zona Norte do Rio de Janeiro, são feitas pela equipe do Voz das Comunidades no projeto #Pratodascomunidades, que distribui pratos de refeições para as famílias do território. A jornalista e assessora de comunicação do Voz das Comunidades, Neila Marinho, pontua que a iniciativa nasceu em um período pontual da pandemia. “Quando o número de pedidos de doações aumentaram, cresceram os casos de pessoas desempregadas e a falta de recursos para se preparar as refeições. Então, o projeto foi criado para levar refeições prontas para quem precisa, além de também gerar empregos na comunidade”, explica.

No site da ação, ainda é possível ver que o objetivo central é assegurar a alimentação para os moradores do Alemão, seja em cesta ou nos pratos prontos. “A pandemia continua e a fome nas comunidades também. Hoje, a iniciativa está entregando cestas básicas para diversas famílias”, apresentam.

A taxa de desemprego ainda é um ponto que impacta diretamente na segurança alimentar da população. Muitas famílias permanecem sem acesso à renda básica, esse foi um dos impactos observados pela equipe do Voz. “A falta de renda básica já existia dentro das favelas, com a pandemia, o problema ficou mais visível e a procura por ajuda explodiu. Recebemos diariamente milhares de pedidos de ajuda e de todas as formas, como: cesta básica, remédios, empregos e etc. Com base nessas informações conseguimos nortear os problemas sociais e, buscar apoio e realizar as ações”, dialoga Neila.


Iniciativa do Voz das Comunidades distribui alimentos em todo Alemão. Doações podem ser feitas por PIX ou através do site da iniciativa.

Protagonismo periférico e favelado na redução dos impactos

Na Cidade de Deus, diversas ações em prol da alimentação aconteceram e continuam a ser realizadas em todo o território. Exemplo disso é a Casa Dona Amélia, espaço dedicado ao fortalecimento territorial a partir da garantia de cidadania e acesso à informação e à cultura. Em entrevista ao FavelaPOD, o podcast do Observatório de Favelas, Ingrid Siss, psicóloga social e fundadora da organização, pondera que o cenário ainda é crítico meses após a chegada do coronavírus no país. “Importante pensar que nesse um ano nós vivemos um ciclo que se retornou justamente um ano após, com contextos muito parecidos e um número de casos muito maior. Agora vivendo também com o perigo das variantes, mas com alguns avanços. Mas exatamente um ano após, vivemos um momento de pico e apreensão maior. Nesse um ano, acho que alguns pontos tornam a vivência e a experiência de um morador de favela dentro de um contexto de pandemia mais complicado e vulnerável”, afirma.

Na Casa Dona Amélia, as doações foram mobilizadas de forma a atender as famílias mapeadas pela organização. “A gente se ateve às necessidades que aconteceram por conta do momento pandêmico. Então, um número muito maior de pessoas com necessidades alimentares, necessidades financeiras. Corremos muito atrás de doações para poder manter essas famílias durante a pandemia. Todas essas que estavam mapeadas e estiveram com a gente e foram atendidas de alguma forma pela Casa, nós fomos tentando manter um ritmo de recebimento para amenizar os impactos da pandemia”, finaliza.

A dificuldade de ter o básico no prato não é uma realidade exclusiva da região central do Rio de Janeiro. Ainda na região metropolitana do Estado, na Baixada Fluminense, os impactos podem ser sentidos por boa parte dos moradores dos municípios que integram o território. O Wesley Teixeira, morador do Morro do Sapo e membro do Perifa Connection, da Coalizão Negra por Direitos e secretário executivo da Frente de Evangélicos pelo Estado Democrático de Direito, afirmou também no FavelaPOD, que os reflexos da pandemia acontecem diretamente na vida das pessoas. “É só pensar que os impactos após esse um ano na Baixada Fluminense é um sobre a vida das pessoas pobres e trabalhadoras que formam a maioria dos trabalhadores dessa região. As pessoas que saiam para realizar o seu trabalho, na maioria trabalhadores informais, estão com mais dificuldades de realizar mesmo a grana e conseguir dinheiro”, exclama.

Organizada pela Coalizão Negra Por Direitos, a campanha Tem Gente Com Fome surge de uma estratégia de organizações da sociedade civil para reduzir o sofrimento de pessoas que não têm o que comer durante a crise sanitária imposta pela COVID-19. As ações da Coalizão são em prol de um Brasil menos desigual e atuam em múltiplas frentes, principalmente na alimentação. “Como disse Carolina Maria de Jesus, a fome no Brasil tem cor. E a cor da fome no Brasil não é das paquitas da Xuxa. Estamos nessa inciativa. A campanha tem o nome de ‘Tem gente com fome’ por causa do poeta Solano Trindade, que sai do Recife e mora aqui na Baixada Fluminense, essa figura do movimento negro que faz um poema dizendo que ouvia pelas estações de trem ‘tem gente com fome’, e ele termina com uma ordenança a ‘Tem gente com gome, dá de comer'”, conclui Wesley ao FavelaPOD.

Se faltam políticas públicas de seguridade alimentar e nutricional, sobra um mal planejamento e o descompromisso com a realidade da população. Como disse Carolina Maria de Jesus, “quem governa o Brasil não sabe o que é a aflição do pobre”.

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