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Protagonismo LGBTQIA+ no território da Maré: a luta pela garantia de direitos e visibilidade

Reportagem – Isabella Rodrigues (isabella.rodrigues@observatoriodefavelas.org.br)
Arte Gráfica – Marcella Pizzolato (marcella@observatoriodefavelas.org.br)

Junho é marcado pelo reconhecimento da luta LGBTQIA+. Há décadas, esse movimento exige a garantia dos direitos básicos necessários para se viver em sociedade, mas que, por muito tempo, foram negados e ainda são — principalmente para pessoas que moram em territórios marginalizados. No dia 28 deste mês, nós celebramos o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, em decorrência da série de manifestações que ocorreram nessa mesma data, em 1969, na cidade de Nova Iorque.

A causa dos protestos, naquele ano, foi a violência policial atribuída a frequentadores de um bar voltado para comunidade LGBTQIA+. O acontecimento foi um, de muitos, casos de repressão das autoridades. A Rebelião de Stonewall, como ficou conhecido o episódio, foi uma resposta à discriminação e a perseguição que pessoas LGBTQIA+ sofriam durante a década de 60. Esse marco é histórico e deixou um legado que permanece nos dias atuais, o que reflete na trajetória de milhares de indivíduos que lutam para existir dentro do corpo social. 

Nadar contra a maré de intolerância ainda é um desafio contínuo no Brasil, considerando que o país segue no topo do ranking de assassinatos de travestis e transexuais no mundo. Segundo mapeamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2020, 175 homicídios ocorreram no Brasil, contra 44 nos Estados Unidos. Ainda nesse contexto, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia, a cada 19 horas, uma pessoa LGBTQIA+ é morta no país. A falha do Estado em garantir proteção e a ausência de políticas públicas que contemplem essa população, ficam evidentes principalmente nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. Os avanços em prol da comunidade LGBTQIA+, como à criminalização da LGBTfobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019, ainda não são realidade em territórios favelados.

Nesses lugares, antes de tudo, a luta é para permanecer vivo. Assim, organizações sociais, líderes comunitários e outras pessoas que fazem parte do movimento e que ocupam espaços estratégicos, seguem a fim de mobilizar a sociedade para temas relacionados à população LGBTQIA+ que vive nas favelas.

Lutar para existir

Entre essas organizações, está o Grupo Conexão G, que atua desde 2006 no Conjunto de Favelas da Maré e promove cidadania à população LGBTIA+ deste e de demais territórios periféricos. A líder comunitária Gilmara Cunha, uma das fundadoras do Conexão G, é referência na luta por políticas públicas voltadas às mulheres trans e travestis, especialista na temática LGBTQIA+ de favela. Em 2015, Gilmara recebeu a medalha Tiradentes, premiação concedida a pessoas que prestaram relevantes serviços à causa pública do Estado do Rio de Janeiro. Já nas eleições municipais de 2020, concorreu ao cargo de vereadora, mas não foi eleita. 

Segundo a ativista, existem avanços na construção de políticas públicas voltadas para LGBTQIA+, como a criminalização da homofobia, o direito à adoção de crianças por casais homoafetivos, entre outras políticas. Ainda assim, a população de favela não alcança e não usufrui desses avanços, principalmente no direito à vida. No Brasil, a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos. 

“A gente luta para a criação, lá fora, de políticas públicas e, aqui dentro, para a existência desses corpos nesses territórios favelados. Então o Conexão G emerge de uma falta de política pública, mas também de uma necessidade de visibilizar aquilo que é invisível dentro desse próprio espaço”, afirma Gilmara.

Há 15 anos, a ONG atua com foco na temática dos Direitos Humanos e na Promoção de Saúde, e teve suas primeiras ações voltadas ao trabalho de prevenção do HIV/Aids. Ao longo desse tempo, o Conexão G tem realizado seminários, workshops, cursos de formação e realizou, em 2018, o 1º Seminário Nacional sobre Assassinatos da População LGBT no Brasil. Além disso, o grupo organizou diversas Paradas do Orgulho LGBT que, antes da pandemia, reuniam milhares de pessoas todos os anos na Maré. O evento contou como parte da programação da Semana da Diversidade da Maré, que tem a proposta de mobilizar, dialogar e propor uma reflexão sobre as diferentes formas de preconceito na favela. Em decorrência da pandemia, a 10º edição aconteceu no formato online, em setembro de 2020. “Mas eu acredito que o divisor de águas dessa instituição, a conquista maior, foi dar visibilidade àquilo que era invisível e reconhecê-las como gente e parte da construção desse território”, complementa Cunha.

Seguindo as orientações da OMS para combate e prevenção ao coronavírus, o Conexão G tem atuado na modalidade home office e no modelo híbrido, com a entrega de preservativos, cestas básicas e materiais de higiene, além de fornecer plantões de atendimento. Questionada sobre os próximos planos de atuação na garantia de direitos da população LGBTQIA+ de favelas, Gilmara ressalta que a principal demanda é continuar a lutar para a existência. “A gente primeiro precisa a todo momento se auto afirmar e existir dentro desse espaço. Se a gente existir, o que a gente for conquistando enquanto direito vai ser ao longo de um processo”, pontua a fundadora do Grupo.

Com o engajamento do Conexão G, neste ano, o território da Maré será o primeiro conjunto de favelas a inaugurar um Centro de Promoção da Cidadania LGBTQIA+. A iniciativa está ligada ao Programa Rio Sem LGBTfobia, da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, e vai oferecer serviços gratuitos de assistência jurídica, psicológica e social, além de cursos profissionalizantes de informática e corte e costura. Em homenagem à luta de Gilmara, o Centro levará seu nome e tem previsão de início em julho.

Ainda em 2020, Gilmara contribuiu com o relato de sua trajetória na esfera individual e coletiva para o e-book DELAS: Estratégias de enfrentamento à violência de gênero e letalidade feminina.A publicação é resultado do curso online “DELAS: Direitos, Política e Arte”, uma formação virtual para mulheres (cisgênero e transgênero) promovida pelo eixo de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas. Através da sua história de luta, nos leva a pensar nas formas de violência que atingem mulheres transgênero e travestis moradoras de territórios periféricos. 

Visibilizar pelo afeto

Mecanismos de silenciamento e invisibilidade também atravessam a história do protagonismo de mulheres lésbicas e bissexuais no Complexo da Maré. Para lançar luz ao tema, a assistente social, Dayana Gusmão, compartilhou compartilhou um pouco de sua trajetória, experiências e vivências.

Dayana Gusmão é fundadora da Coletiva Resistência Lésbica da Maré e Coordenadora Política Nacional da Articulação Brasileira de Lésbicas e Mulheres Bissexuais – ABL. A ativista conta que cresceu com todas as belezas e agonias de uma moradora da Maré. Morava com sua avó, costureira, sua mãe, professora e seu pai, militar da marinha. Sua vida foi atravessada por formas de autoritarismo, mas era influenciada por mulheres que construíam resistências dentro de casa.

Sua aproximação com os movimentos feministas ocorreu aos 15 anos, ainda no Ensino Médio. Mais tarde, na universidade pública, Dayana conta que sua caminhada se consolidou, porque mesmo com a proximidade da luta por direitos das mulheres, sua criação religiosa e militar a atravessava, revelando-se muitas vezes em modos bem conservadores de vida. Sua aproximação com os movimentos de lésbicas e mulheres bissexuais de modo contundente começou em 2012 quando trabalhava no Programa Estadual Rio Sem Homofobia. A assistente social saiu do programa em 2015 para trabalhar com a população LGBTQIA+ da Maré na única ONG voltada a esse público dentro do conjunto de favelas, o Grupo Conexão G. Então, compreendeu que existiam tentativas de organização do movimento social de lésbicas e bissexuais no território, mas não com a mesma força política de outros movimentos que contemplam a população LGBTQIA+. Ao lado de Michele Seixas, integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres, deu início a um processo de fortalecimento destas pautas.

Em 2016, decidiram fundar a Coletiva Resistencia Lésbica da Maré, que teve como primeiro nome Resistência Lesbi de Favelas. “A ideia era ter um espaço seguro para escuta e sociabilidade sapatão e bi. Obviamente outras demandas foram se apresentando e em 2017 decidimos dar tom mais politico à coletiva ocupando espaços de decisão e fazendo articulação com outros grupos estaduais e nacionais da pauta lésbica e bissexual”, afirma Dayana.

A assistente social conta que o maior desafio para a implementação do grupo foi a lesbofobia estrutural. “Aos poucos fomos nos organizando, juntando mulheres, nos colocando nas redes sociais de modo a garantir que ninguém mais pudesse negar que na Maré existem lésbicas organizadas.” Como forma de garantir essa memória, a organização publicou no Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais – SENALESBI de 2017 o artigo “10 anos de luta e resistência lésbica da Maré: reflexões de sapatões faveladas”, que conta a trajetória das mulheres que anteriormente tentaram organizar o movimento sapatão na região da Maré.

A Coletiva Resistencia Lésbica da Maré sempre acolhe as demandas das mulheres e, em 2020, para driblar os impactos da pandemia, criou o “Projeto Socorro à Elas na Covid 19” que doou mais de 200 cestas básicas a mulheres lésbicas e bi chefes de família. “Costuramos encaminhamento psicológico gratuito e apoio durante os processos de acesso ao auxílio emergencial e a outros benefícios sociais cujo acesso é via CRAS”, diz a ativista. Ainda neste ano, com o objetivo de visibilizar as vivências lésbicas de favela, sobretudo as experiências de não violência, a Coletiva realizou o mapeamento Sócio-Cultural-Afetivo das Lésbicas e Mulheres Bissexuais do Complexo da Maré. Além disso, Dayana revela que a organização pretende se consolidar como referência tanto para lésbicas e bissexuais na Maré quanto para os equipamentos que atendem as demandas de mulheres no conjunto de favelas. “Como aspiração pós pandêmica, um papo sapatão presencial, onde possamos trocar afetos e experiências”, finaliza. 

Arte favelada e política

No território da Maré, a arte também se faz presente, atuando como ferramenta de incidência política, capaz de debater as questões de gênero. O conservadorismo extremista que atravessa a sociedade atual propõe uma narrativa opressora às causas da população LGBTQIA+. Em contrapartida, atividades culturais desenvolvidas nos territórios favelados e periféricos se mostram essenciais para levar à reflexão crítica acerca de pautas que foram por muito tempo invisibilizadas.

Entre os meses de maio e junho, o Galpão Bela Maré, centro cultural gerido pelo Observatório de Favelas, abrigou a exposição “MASCULINIDADES em DIÁLOGO”, que reflete sobre estereótipos associados à figura masculina construídos no imaginário popular. A mostra é o resultado da residência artística “Construindo Masculinidades Outras”, promovida pela ELÃ – Escola Livre de Artes, que, neste ano, teve como eixo central pensar as masculinidades. Atualmente a exposição encontra-se disponível no formato virtual, em sua versão 360º.

O curador do Galpão Bela Maré, Jean Carlos Azuos, destaca que para além de uma exposição, MASCULINIDADES em DIÁLOGO permite “a visualidade e também um panorama das construções de artistas de diversos espaços do Rio de Janeiro, espaços populares, periféricos e de favelas,” apresentando a forma como esses artistas refletem e pensam as masculinidades.

As obras se revelam capazes de criar novas narrativas, gerar provocações e apontar para outras possibilidades de existências, utilizando dos campos visuais e poéticos. Para refletir sobre a importância do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ através das palavras, convidamos Matheus Morani, Rafael Amorim e Taísa Vitória, artistas que participaram da residência artística e da exposição Masculinidades em Diálogo.

Ainda há um árduo caminho a percorrer para celebrarmos esse mês como apenas um marco da conquista de direitos para a população LGBTQIA+. Visibilizar é garantir o protagonismo de pessoas como Gilmara, Dayana, Jean e tantas outras que reivindicam diariamente a existência plena com luta, afeto e arte.

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