Reportagem: Gabrielle Araujo (gabrielle@observatoriodefavelas.org.br)
Arte: Taiane Brito (taiane@observatoriodefavelas.org.br)
“Do planeta fome!“. Vestida com roupas simples, ajustadas ao corpo por alfinetes e certa de testar sua sorte em um programa de auditório em 1953, a frase dita por Elza Soares ainda reflete atualmente, com maestria, a realidade de muitos brasileiros. Quase um ano após o decreto da pandemia causada pelo coronavírus, o país registra alta nas taxas de desemprego e caminha em corda bamba em uma crise que acomete não apenas a economia, mas também a saúde. Para moradores de favelas e periferias, lidar com esse vírus invisível é apenas um dos problemas que enfrentam diariamente na garantia de direitos.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Mensal (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil acumula mais de 14 milhões de desempregados. Os dados correspondem ao terceiro semestre de 2020 e possui um indicativo percentual de 14,6% da população. Em relação a gênero e faixa etária, mulheres e pessoas de 25 a 39 anos são a grande maioria.
Como forma de sanar provisoriamente os impactos negativos de taxas tão altas, o Governo Federal ofereceu de abril a dezembro de 2020 o auxílio emergencial. O benefício foi destinado aos desempregados, trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI) e autônomos como medida de enfrentamento aos impactos causados na renda deste grupo de pessoas em decorrência da pandemia de coronavírus. A Caixa Econômica Federal atua como operadora deste benefício que tem seus recursos disponibilizados através do Ministério da Cidadania.
Para receber a iniciativa, foi necessário que o público destinado realizasse inscrição prévia no site do Auxílio Emergencial e aguardasse resultado da análise feita pelos órgãos responsáveis por sua administração. Os aprovados receberam o valor em conta bancária informada no cadastro ou, caso não possuíssem, era aberta automaticamente uma conta poupança social e digital no aplicativo CAIXA TEM. Quem estivesse no Cadastro Único (CadÚnico), receberia automaticamente o valor disponibilizado inicialmente em conta corrente.
Durante esse processo de implementação, os problemas foram inúmeros, principalmente pelo acesso à medida ser feito de forma virtual. De acordo com o levantamento da Pnad, divulgado em abril de 2020, cerca de 5,7 milhões de trabalhadores informais não possuíam acesso à internet no fim de 2018. O número reflete que, mesmo com o benefício do Governo, o projeto apresentou falhas em sua estruturação e não considerou a desigualdade social latente no país.
Pandemia, renda e alimentação
A moradora de Duque de Caxias, Joyce Salvador, utiliza as redes sociais como principal ferramenta de trabalho e não se limita ao se posicionar sobre os assuntos que estão em voga, principalmente quando é sobre maternidade. Com textos assertivos, fotos junto aos dois filhos e vídeos nos stories, narra a sua rotina e também os principais ganhos e desafios desta caminhada. Ela conta que o auxílio emergencial foi de extrema importância para a renda da sua família em 2020. Produtora de conteúdo e modelo, ela atua de forma informal e precisou pausar com as atividades assim que a pandemia chegou. Mãe solo de Ágatha, de 7 anos, e de Akim, de 1 ano e 8 meses, Joyce também passou por entraves para acessar o benefício. “Infelizmente eu não consegui receber todas as parcelas, pois houve um erro indevido. Mesmo sendo mãe solo, fiquei sem receber 3 das 8 parcelas a que tinha direito. Ainda tentei, sem sucesso, recorrer”, pontua.
De acordo com o IBGE, as mães solos totalizam cerca de 11 milhões no Brasil e destas, 61% são mulheres negras. Joyce integra esse grupo, que é classificado ainda como mulheres provedoras de família monoparental com filhos de até 14 anos. No ano de 2020, elas tiveram o direito a receber cinco parcelas de R$1.200 e, com a prorrogação, mais três de R$600 do auxílio emergencial. Ambos os valores correspondem a duas cotas do auxílio de R$600 e R$300, respectivamente, conforme sancionado pela lei 13928, de 2 de abril de 2020.
A última parcela do auxílio foi paga em dezembro de 2020. Para 2021, o futuro ainda é incerto. Na Câmara dos Deputados, tramita o Projeto de Lei 2099/20 que institui o auxílio permanente de R$1.200 para mulheres chefes de família e sem companheiro. A iniciativa foi apresentada pelo deputado Assis Carvalho (PT-PI) e atualmente aguarda relator na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER).
O município de Caxias é localizado na Baixada Fluminense e é um dos que mais sofrem com a desigualdade social. O Mapa da Desigualdade, da Casa Fluminense, aponta que a cada 100 habitantes da região, apenas 16 possuem emprego formal. Esse dado ainda pode ser potencializado pela pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, que mostra que da População da Região Metropolitana do Rio de Janeiro em 2019, 9,51% viviam abaixo da linha da pobreza. Com o pagamento do auxílio emergencial, o número apresentou queda em setembro de 2020 e marcou 4,96%. Porém, com a redução do auxílio em novembro para R$300, o percentual voltou a subir e alcançou 8,27%.
Paralelo a isso, nas últimas semanas, as notícias de que o governo estuda prorrogar o auxílio neste ano ganharam destaque. Entretanto, o valor estudado é de R$200, sumariamente inferior ao que foi pago no ano passado. Joyce avalia que os impactos causados por essa diminuição será ainda maior para mulheres que possuem filhos pequenos em casa. “Serão gigantescos principalmente para nós que somos mães. 1 lata de leite está custando 15 reais! Os alimentos estão cada dia mais caros e o governo baixou o auxílio drasticamente. Como se não bastasse o coronavírus, querem matar os pobres de fome”, enfatiza a produtora de conteúdo.
A alimentação é o principal gasto do auxílio emergencial. Como mostra a pesquisa de opinião pública do Datafolha, na qual aponta que das pessoas entrevistadas que receberam ao menos uma parcela do auxílio emergencial, 53% direcionaram o benefício para a compra de alimentos. Entre os que têm menor renda, 61% utilizam o dinheiro do auxílio com o mesmo objetivo, além disso, “entre os desempregados esse índice é de 62%”. O Datafolha realizou 2065 entrevistas por telefone, de brasileiros com 16 anos ou mais, entre os dias 11 e 12 de agosto do ano passado.
A Renda Básica que Queremos!
O filósofo, pós-graduado em História do Brasil, Fundamentos em Educação Especial e Métodos e Técnicas de Elaboração de Projetos Sociais, José Antônio Moroni, é membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que possui forte atuação na garantia de direitos da população mais vulnerável socioeconomicamente diante da pandemia. Morador de Brasília, ele comenta sobre como a mobilização foi importante para a garantia da renda básica em 2020, com a campanha “A Renda Básica Que Queremos”, e defende sua permanência até o fim do atual contexto crítico de saúde.
“Percebemos que o governo federal não iria levar a pandemia a sério e também não iria criar nenhuma política de apoio para a população enfrentar a pandemia, o isolamento e as suas consequências. O governo, a princípio, fez uma proposta de no máximo R$200. Articulamos, fizemos incidência no parlamento e mobilizamos a sociedade e fomos à imprensa falar que esse valor era insuficiente e que apresentamos a proposta de no mínimo R$300 por pessoa ou R$600 por família. Fomos articulando tudo e conseguimos a aprovação do auxílio no valor de R$600”, sintetiza.
Apesar dos esforços, o Governo Federal ainda instituiu uma medida provisória que reduziu o valor acordado para a metade. Moroni pontua ainda sobre a falta de preparo dos representantes políticos em instituir o auxílio de forma acessível e integral às pessoas que possuem os critérios para receber a renda. “Hoje a nossa luta é para ter um auxílio de R$600 no mesmo molde e nos mesmos critérios estabelecidos até o final da pandemia. Mas resolvendo os problemas de implementação. Nós tivemos um problema sério na implementação, desde a questão do aplicativo, de cada cadastro ter um número de celular e vários outros exemplos”, completa.
Agora em 2021, cerca de 300 organizações sociais se mobilizaram novamente em prol da garantia de direitos, a exemplo da campanha “Auxílio Emergencial até o fim da pandemia!“, lançada no início de fevereiro. O intuito é pressionar o congresso sobre a urgência do benefício como forma de assegurar a vida de milhares de pessoas que estão em situação crítica devido a crise sanitária. “A garantia de renda tem que vir como mais uma política e não para substituir as demais existentes. Muita gente está defendendo a renda básica em detrimento da saúde, da cultura, da educação etc. O que nós queremos é que tenha essa renda permanente e que seja integrada ao atual sistema de políticas que já temos”, discorre o ativista.
A fala de Moroni, que atua com movimentos sociais na luta por democracia e pelos direitos humanos há anos, reforça que a atual gestão do governo ainda transita em um discurso excludente e na constante derrubada das políticas públicas de garantia de vida. Sumariamente, ele ainda reflete que apesar do engajamento de entidades sociais em promover e assegurar os direitos de moradores de favelas e periferias, essa função ainda é do Estado e a renda permanente deve ser encarada de forma íntegra. “Esse debate já vem de muito tempo, mas estava meio secundarizado. Ter uma política pública de renda básica é fundamental. Devemos colocar esse debate no hall da proteção social e das políticas de seguridade social”, acrescenta.
Semelhante à Moroni, Joyce Salvador aproveita para pontuar que políticas públicas como o auxílio emergencial não são um favor do governo, e sim um dever. “A gente paga imposto em todo e qualquer serviço e produto. Em um momento como esse, o governo só está devolvendo o nosso próprio dinheiro”, finaliza. E sim, garantir o acesso à renda, é assegurar a vida.