...
Search
EN PT ES

Sobre nós

Artigo – Gabrielle Araujo (gabrielle@observatoriodefavelas.org.br)
Arte Gráfica – Marcella Pizzolato (marcella@observatoriodefavelas.org.br)

Rio de Janeiro — Com múltiplas facetas e um viés um tanto quanto empírico, o afeto pode ser caracterizado como um conjunto de ações subjetivas que envolvem nossos sentimentos e emoções para com outra pessoa. Por vezes, essa condição está diretamente ligada ao significado de amor romântico e suas expressões no mundo cotidiano. Contudo, é importante pontuar que, por mais que sejamos bombardeadas por construções cinematográficas ou contos sobre a perpetuação do amor e do afeto, para entender a presença desses dois elementos, o contexto deve ser perpassado antes pelos recortes de classe e raça.

Nesse âmbito, as mulheres negras precisam lidar com uma realidade que destitui de humanidade as suas narrativas e não as consideram aptas ao cargo de “mulheres ideais” dignas de receberem afeto – seja ele da natureza que for. Essa ideia tem o seu início ancorado na história. E, para compreender um pouco mais sobre isso, vamos até o ano de 1851, mais precisamente na Segunda Conferência Anual dos Direitos das Mulheres em Akron, no estado de Ohio – EUA.

Com uma fala ácida e bem objetiva, a abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres, Sojourner Truth, discursou sobre a ausência dos direitos das mulheres negras na época. Em um determinado momento, Sojourner cita como exemplo que os homens da região dedicavam as suas gentilezas apenas às mulheres brancas, tais como: ajuda para pular poças de lama, subir em carruagem, etc. Diante dessa situação, ela pontua assertivamente: “E eu não sou uma mulher?”.

Séculos depois, a fala da ativista é considerada um marco para o feminismo negro, especialmente quando se debate afetividade, performances de feminilidade e direitos. Em uma analogia contemporânea, esse discurso abre espaço para a forma como as mulheres negras ainda são personificadas socialmente e o quanto as suas narrativas são preenchidas por estereótipos e demais imaginários sobre seus corpos e intelectualidade. Um elemento que colabora com essa ideia são determinados produtos de comunicação. Por exemplo, as personagens negras em produtos televisivos normalmente estão em papéis secundários e há um forte apelo em caracterizar essa mulher negra como forte e capaz de gerir e cuidar de todos os seus problemas e também daqueles das demais pessoas ao seu redor. São governantas, secretárias ou até mesmo a esposa que tudo suporta e está disponível a todos os anseios do esposo etc.

Em suma, o oceano que rege a vida da mulher negra é repleto de águas revoltas e tempestades que não cessam. Afinal, seguir diariamente em ambientes que possuem tanta descrença, desestímulo interno e, principalmente, externo, é uma luta contínua. Por inúmeras vezes, elas são atropeladas em ondas de ego que buscam invalidar a todo momento o seu discurso. E isso pode ser representado em diferentes circunstâncias, como a vida profissional, a amizade, a autoestima e, principalmente, a família.

Um dado que explica também esse contexto vem do Censo IBGE de 2010. A pesquisa aponta que, das mulheres negras entrevistadas, cerca de 52% não possuem uma relação afetiva estável. Estas, nem sempre por opção própria, e sim como consequência de um retrato social. E esse ponto estende-se à construção do que é divulgado como significado de família. Em 2018, por exemplo, o total de mulheres negras e chefes de família sem cônjuge chegou à marca de 7,8 milhões, enquanto o de mulheres brancas na mesma condição foi de 3,6 milhões. O levantamento é do portal de notícias Gênero e Número, com dados consolidados do IBGE de 2012 a 2018 sobre famílias monoparentais com filhos de até 14 anos. Além disso, em relação às brancas, o número apresentou queda: em 2012, o número total era de 4 milhões de familiares monoparentais chefiados por mulheres brancas.

Em Vivendo de Amor, bell hooks pontua que “de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os sentimentos era uma bobagem”.

Nesta ótica, não se pode deixar de considerar toda a trajetória que essa mulher ocupa na sociedade e todos os campos que essa solidão interfere, ou seja, a sua escrevivência: “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil”, como apontado por Conceição Evaristo em seu livro “Becos da Memória” (Editora Pallas, 2017).

O afeto deve ser representado para além das relações românticas, baseadas em um imaginário midiático que possui doses consideráveis de ficção. Ele deve, em sua síntese é premissa básica de existência, ser perpetuado em diferentes ambientes. Em muitas famílias negras, esse sentimento é transformado em atitudes: seja no cuidado do preparo de um alimento, na busca pela harmonia diária na família, em acompanhar até o ponto de ônibus uma pessoa e, acima de tudo, quando se escolhe permanecer e compreender o universo em potencial que habita no outro. Por fim, enquanto mulheres negras, que possamos construir a nossa narrativa pautada no afeto com nós próprias.

LEIA TAMBÉM!

Arte e território

O Observatório de Favelas torna pública a seleção de pessoas educadoras para o Programa Educativo do Galpão Bela Maré.

Edital

Seleção Aberta para Analista de Desenvolvimento Institucional

Confira o resultado da segunda edição do Cenas DELAS

Copyright – 2021 ©. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por: MWLab Digital