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Frestas de potência humana

Por: Eduardo Alves* (edu@observatoriodefavelas.org.br)

Gabriel O Pensador lançou seu clipe novo: TÔ FELIZ (MATEI O PRESIDENTE) 2. Arte é assim e como arte deve ser vista e pensada. No entanto, há muita gente no Brasil querendo “matar o presidente” atual. Não se trata de matar fisicamente, com alguma arma letal; e caso se trate para alguém, não vem ao caso. O que vem ao caso é que o presidente encarna todo o incômodo que existe na sociedade do presente, principalmente no Brasil, em que as memórias mais recentes, pós ditadura militar até os dias atuais, não colaboram em nada e criam um mar de imensas ondas de contradições.

Para além disso, o clipe de O Pensador nos apresenta símbolos, pessoas que formam o grande e poderoso sujeito coletivo com o qual esse artigo se identifica. Indígenas, negros, explorados, criminalizados pelo Estado, em violências que crescem progressivamente e chegam a aparecer em desenho de cultura, ideologia e em variadas ações de interdições do Estado. Chega na arte por esse peso crescente e, portanto, é o que justifica aqui lançar mão da arte, da expressão de símbolos e de representação de cultura como ponto de partida.Este artigo, portanto, é uma contribuição para pensar o “não aguento mais” que predomina e que produz imagens e soluções que não correspondem às mudanças necessárias para os que “não aguentam mais”. Nós vamos para além do conflito crescente com os grupos sociais dominantes: conquistaremos frestas e superaremos a ordem.

O mundo capitalista que se coloca sobre as cabeças das pessoas, na forma de violência, controle e ilusão para a grande maioria das pessoas, é um poder que reina como obstáculo para o desenvolvimento da potência humana. E, para ajustar a linguagem, o sistema capitalista assim se coloca porque o objetivo incontestável do lucro faz com que produções de mercadorias sejam processo de esgotamento da natureza, lixe o processo criativo e imponha, à imensa maioria, dependência em diferentes escalas. No momento atual em que o sistema está pigmentado de intolerância para todas as dimensões e por todos os lados, as potências criativas, que encontram frestas de criação, são duramente atacadas.

Portanto, aqui não está em questão a criatividade artística que aparece na música e no clipe de Gabriel O Pensador. A arte só motiva o assunto que se puxa aqui, mas não é objeto da conversa. O objeto da conversa é a potência humana. Por isso, as letras aqui, deslizarão pelo sistema imposto e pela formação social brasileira, mas com olhar para superação dos obstáculos da potência criativa humana em todas as suas dimensões. Trata-se somente de apresentar pistas que contribuam para desfolhar o sistema, desfolhar o Estado e brotar potência humana.

A ordem sistemática que envolve a grande maioria das pessoas apresenta o trabalho como processo voltado para a sustentação da vida, para a compra, para um exercício de se manter no mundo. Trabalha-se, predominantemente, para que se possa comer, morar, vestir, se transportar e se manter vivo. E o se manter vivo tem como expectativa viver momentos de felicidades, com pessoas que se ama e se deseja; com momentos de alegrias, em encontros, viagens, passeios, visitas das várias artes existentes. Assim são pessoas cindidas, pois o poder criativo não atravessa toda a vida e o trabalho encontra uma localização fixa de manutenção da existência e não um lugar de ambiente contínuo de desenvolvimento da potência humana. O poder criativo, sem mágica, com medidas objetivas e materiais, se faz desaparecer. Construir frestas para elevação da potência humana é um grande desafio e, com isso, desfolhar o sistema e construir a presença visível, sensível e inquestionável do poder criativo em toda a vida recolocando o lugar do trabalho.

Essa universalidade do trabalho no sistema no qual vivemos encontra pontos de ampliação e profundidade (não)humanas em vários aspectos e em múltiplas dimensões. Os Estados-Nações existentes, com suas próprias formações sociais, características de movimentos históricos de seus próprios povos, são demonstrações disso. No Brasil, alarga-se o peso que o sistema impõe com três aspectos centrais, estruturais e institucionais, produtos da formação histórica e da correlação de forças existente: o patrimonialismo, o racismo e o machismo.

Nesse sentido, os sujeitos da ordem que impera e os das transformações necessárias para conquistar o caminho da potência humana não são os mesmos: não são as mesmas pessoas, não são os mesmos grupos sociais, não ocupam os mesmos territórios, não são os mesmos sujeitos coletivos.

No Brasil pesa de forma predominante e incontestável a necessária superação do patrimonialismo estrutural e institucional como fundamento de uma república. Indo além de qualquer distinção entre discursos liberais e socialistas, busca-se aqui apontar superações necessárias.Para além da exploração constante do trabalho, uma exploração humana que desloca as condições de criatividade da transformação da natureza e das relações com outras pessoas, a que coloca o lucro acima da vida. Isso pigmenta em todos os aspectos territoriais, com investimentos que são focados em territórios dos grupos sociais dominantes com equipamentos e investimentos múltiplos que potencializem o exercício de viver; e, por outro lado, o Estado aparecendo como portador da violência contra os sujeitos e impondo olhares que são preconceituosos nas e sobre as várias dimensões.

Esse aspecto é reforçado com a evidente presença desigual entre mulheres e homens, negras e brancas ou negros e brancos, principalmente nos espaços de trabalho, do Estado ou do mercado. Mas também em todas as principais imagens que marcam o cenário da aparição dos corpos na cidade: universidades, cinemas, museus, restaurantes. Isso sem contar com o incômodo que os grupos sociais dominantes e a classe média sentem em partilhar espaços urbanos que são considerados, por esses, como seus, tão privados como aquilo que possuem em suas próprias vidas.

Construir proposições de políticas públicas e ações ativistas para conquistar frestas de aberturas democráticas e desfolhar o Estado ampliando suas contradições, são ações mais que necessárias e atuais. O Estado brasileiro nada de público possui. O que faz, e que aparece como exceção, se coloca como regra permanente de ação, na qual os numerosos grupos sociais que vivem a força da exploração, do controle e das interdições sofrem. As frestas de políticas públicas e de formação coletiva, construindo esferas de participação, trabalhos que potencializem a potência humana, ações inovadoras que colocam a vida como primazia, são estudos, formulações e ações que pulsam.

As pessoas que são os sujeitos para esse processo, a ser construído de forma potente, continuado e que mobilize um poder transformador, são as que fazem a periferia existir. Não estamos em tempos modernos e as engrenagens que se misturam como objeto com as pessoas não são as das máquinas. Trata-se da conquista do lugar do sujeito, superando o olhar de objeto que essa condição predominante impõe. As brechas conquistadas são impulsos para desfolhar radicalmente o Estado e construir, com todo poder criativo da humanidade necessária, uma ordem de vida e não de mercadorias. Assim se abrem frestas para pigmentar no mundo e em cada corpo a potência humana. É hora de criar, hora de produzir frestas em teorias, conhecimentos, práticas, artes e, em tais condições, abrir grandes tufões de contradições que ampliem em largas escalas a potência humana.

Eduardo Alves – membro da direção do Observatório de Favelas

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