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Moldar o mundo pelo sonho

Por Rebeca Brandão (rebeca@observatoriodefavelas.org.br)*
Arte Gráfica: Marcella Pizzolato (marcella@observatoriodefavelas.org.br)

A capacidade de sonhar coletivamente, quando assumida
na opção pela vivência da radicalidade de um sonho comum,
constitui-se numa atitude de formação que orienta-se não
apenas por acreditar que as situações-limite podem ser
modificadas, mas, fundamentalmente, por acreditar que
essa mudança se constrói constante e coletivamente no
exercício crítico de desvelamento dos temas-problemas
sociais que as condicionam. O ato de sonhar coletivamente,
(…) , carrega em si um importante potencial (trans)formador
que produz e é produzido pelo inédito-viável, visto que o
impossível se faz transitório na medida em que assumimos
coletivamente a autoria dos sonhos possíveis
(FREITAS, in FREIRE, 2001).

2021 é um ano muito especial para o Observatório de Favelas. Além de comemorarmos (em agosto) suas duas décadas de existência e franca atuação, comemoramos também os primeiros dez anos do Galpão Bela Maré e os nove anos da Arena Carioca Carlos Roberto de Oliveira Dicró. A inauguração do primeiro e o compromisso com a gestão do segundo, marcam a chegada de um novo momento para a instituição que, dentro do compromisso central com a redução das desigualdades, passou a dedicar um eixo de trabalho à arte e a cultura, atrelada a um debate sobre o desenvolvimento de competências, sujeitos e territórios populares e periféricos. 

Complementar ao Galpão Bela Maré, que é um projeto autoral da instituição e se consolida hoje como um dos mais promissores espaços dedicados à produção e reflexão sobre arte contemporânea no Rio de Janeiro e no Brasil, a Arena Carioca Dicró é um equipamento cultural público, multilinguagem, que faz parte da rede municipal de equipamentos culturais da cidade do Rio de Janeiro, compondo a rede de Lonas e Arenas.  Desde sua inauguração, em 2012, o Observatório de Favelas está co-gestor, junto a Secretaria Municipal de Cultura, do espaço que fica localizado dentro de um dos últimos respiros verdes na região da Leopoldina, o Parque Ary Barroso, na Penha

Mais do que um programa de gestão cultural, o projeto do Observatório de Favelas para a Arena Dicró, desde o início, é também um projeto político que nos aproxima da cidade que queremos. Nele, temos apostado na cultura como ferramenta não apenas para denunciar práticas opressivas, mas também para propor outras realidades emancipatórias e inclusivas. A partir de um conjunto de práticas de gestão comprometida e articulada com as pessoas e com o território, temos construído uma metodologia orgânica, capaz de contribuir não apenas para que favelas e periferias sejam compreendidas como locais possíveis para a arte habitar, mas também para que moradores de favelas e periferias sejam criadores de suas próprias narrativas, capazes de construir por si e sobre si, outras representações acerca de seus territórios.

Até o início da pandemia de coronavírus, a Arena Carioca Dicró desenvolvia quase 40 atividades autorais, distribuídas em oito eixos de atuação, além de um programa contínuo de apoio programático às escolas municipais da região. Cada eixo de trabalho corresponde sistematicamente ao desejo de dar conta de uma ou mais questões identificadas pela equipe e/ou trazidas pelo público. Foi a partir da demanda por uma curadoria participativa, por exemplo, que construímos o eixo “Participação Ampliada”, onde desenvolvemos o Sextas da Casa e o projeto que acontece no Parque Ary Barroso, o Lá Fora – ambos co-realizados com o público através de reuniões abertas. 

Foi também a partir do desejo de construir um espaço de criação para artistas da Zona Norte, que desenvolvemos três programas dentro do eixo “Residências Artísticas” por onde já passaram, quase 100 nomes de grupos, companhias e artistas em criação nos últimos nove anos, dos quais podemos citar aqui o concorrente ao prêmio Shell, Grupo Teatro da Laje, e a Cia. Passinho Carioca, que nasceu dentro da Arena. Esta experiência em especial tem se mostrado extremamente promissora, não apenas para grupos artísticos, mas também para produtores culturais. O projeto Leopoldina Hip Hop é um exemplo disso. Idealizado por Ana Paula Gualberto e Nyl MC enquanto parte da equipe da Arena Dicró, o projeto hoje aglutina artistas, fotógrafos, videomakers gerando renda para esta cadeia produtiva.  

Viabilizar espaços de criação tem sido um ponto central do nosso trabalho, uma vez que as residências artísticas acontecem majoritariamente nos espaços centrais da cidade, inviabilizando a participação de artistas periféricos. Neste sentido, as residências Artísticas da Arena Dicró tem se firmado como uma referência para artistas, grupos e companhias artísticas, em especial as expressões ligadas à dança. Isso se expressa também nas atividades com caráter formativo: atualmente, das oito atividades regulares que oferecemos dentro dos eixos “Atividades Formativas”; “Aulões”, “Oficinas” e “Cursos Livres”, seis são ligadas à dança. 

A escuta ativa e permanente também se materializa em escolhas cotidianas: o espaço está sempre aberto, mesmo nos momentos em que não estamos realizando atividades. Operamos através de uma arquitetura da convivência, isto é, além da entrada gratuita a área externa, também dispomos de um mobiliário que convida o visitante a relaxar no pátio, através das espreguiçadeiras de pallet. Nosso wi-fi é aberto para o público, assim como o acesso aos banheiros sempre limpos e a água gelada. Por conta disso, muitos grupos locais, não apenas artísticos, utilizam dessa estrutura como um espaço para reuniões e até para trabalhar. Durante a pandemia, o espaço permaneceu aberto para atividades humanitárias, como armazenamento e distribuição de cestas básicas e de cartões-alimentação, cumprindo mais uma vez com sua função política de suporte ao território.

Nos últimos nove anos impactamos diretamente quase meio milhão de pessoas, transbordamos o espaço físico da Arena por quase trinta vezes; realizamos quase dois mil eventos e formamos quase quarenta mil pessoas. E embora os números nos envaideçam, o que mais nos orgulha é poder dizer que estamos cumprindo com nossa missão institucional. No final das contas, provamos para cidade que um equipamento cultural pode fazer bem mais que receber eventos e que os sujeitos historicamente invisibilizados também podem construir suas próprias narrativas através da arte. Não foi simples. Deu trabalho. Foi preciso formar pessoas, confiar nelas e no processo e,  estar disposto ao diálogo com metodologias que não são estáticas e exigem constantemente uma reorganização. Mas isso só foi e é possível porque temos sonhado junto até aqui e esse sonho tem alimentado nosso desejo e imaginação por dias melhores. Parece anacrônico falar de sonho no Brasil, décimo-sexto mês de uma pandemia desgovernada, e seguir insistindo na cultura como trincheira, mas como como já nos disse Matilde “É preciso, sim, desenhar, é preciso fazer canções. A poesia, a música, a pintura, isso não salva o mundo, mas salva o minuto. E é suficiente.”

Tem sido uma longa e gratificante jornada até aqui, mas estamos apenas no começo. Vida longa aos nossos sonhos e vida longa à Arena Carioca Dicró.

 

*Rebeca Brandão é baixadense, produtora cultural, pesquisadora e curiosa da cultura independente carioca e fluminense. Atualmente está na coordenação da Arena Carioca Carlos Roberto de Oliveira Dicró.

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