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Por que uma cidade armada não é uma cidade segura para mulheres?

Por Raquel Willadino (raquel@of.org.br), Thais Gomes (thaisgmsilva@of.org.br), Natalia Viana (natalia@of.org.br) e Isabele Anjos (isabeleanjos@of.org.br)*

Rio de Janeiro – No Brasil, a partir do ano de 2003, foram estabelecidas diretrizes nacionais para a regulamentação do porte, posse e comercialização de armas de fogo através do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03). Este estatuto foi sancionado com o objetivo de fortalecer políticas de controle de armas e munições no país. No entanto, temos visto nos últimos dois anos que grandes mudanças nessa legislação vem fragilizando os instrumentos de controle e fiscalização existentes.

Para se ter uma ideia, no dia 12 de fevereiro deste ano, foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União a alteração dos Decretos Nº 9.845, 9.846, 9.847 e 10.030 de 2019 que regulamentam diretamente o Estatuto do Desarmamento. As medidas estabelecidas em 2021, dizem respeito diretamente à flexibilização dos limites de porte e posse de armas para cidadãos comuns e da atividade de caçadores, atiradores e colecionadores (CAC’s). Os novos decretos autorizam a compra de um número maior de armas de fogo para cidadãos comuns e permitem a livre circulação com duas armas simultaneamente. Além disso, poucos dias depois, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou que todos os integrantes de guardas municipais do país tenham direito ao porte de armas de fogo, independentemente do tamanho da população do município, tornando inconstitucionais dispositivos do Estatuto que proibiam ou restringiam o uso de armas de fogo de acordo com o número de habitantes das cidades.

Mas você deve estar se perguntando: o que isso tem a ver com as mulheres?

A implementação das medidas do Estatuto do Desarmamento, que vem sofrendo frequentes alterações e flexibilizações, tiveram como proposta central restringir a circulação de armas e munições para contribuir na redução da violência letal: desde interromper as fontes de abastecimento de grupos armados, até prevenir mortes acidentais, frequentemente ocorridas no ambiente doméstico, e crimes de ódio, como homicídios motivados por racismo, LGBTIfobias e machismo, como os crimes de feminicídio, por exemplo.

Nesse sentido, a flexibilização da posse e porte de armas de fogo também impacta  diretamente a dinâmica da violência de gênero no Brasil. País esse que registra anualmente altas taxas de violências letais e não-letais praticadas contra meninas e mulheres no espaço público e privado, e que encontra nos casos de feminicídio a expressão mais grave de um contínuo de múltiplas formas de violência sofrido por mulheres. De acordo com os dados do Atlas da Violência (2020), apenas em 2018 mais de 4 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, o que corresponde a uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino. Dessas, 51,6% foram mortas por armas de fogo.

Segundo nota técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), essa realidade foi agravada com o contexto da pandemia, onde as medidas de isolamento social que foram adotadas para reduzir as chances de contaminação da população passaram a apresentar como efeito colateral a intensificação da vulnerabilidade de mulheres em situação de violência no espaço privado. Os desafios que se apresentam no enfrentamento à violência letal de gênero, se intensificam mais ainda quando somados a uma maior circulação de armas de fogo no país, visto que, como apontado pelo Atlas da Violência (2020), o maior acesso a armas de fogo para a população em geral pode impactar nas taxas de violência letal que ocorrem tanto no espaço público, quanto no espaço privado.

Ainda de acordo com o relatório, o uso da arma de fogo em residências implica no aumento das taxas de crimes letais no ambiente doméstico, assim como das taxas de crimes letais que resultam de questões interpessoais, como ocorre em grande parte dos casos de feminicídio, agravando a possibilidade de mulheres serem vitimizadas. Tentativas de feminicídio que por vezes não resultam em mortes em decorrência do meio empregado pelo agressor, passam a ter maiores chances de resultar em feminicídios diante do acesso dos agressores a armas de fogo. Para mulheres em situação de violência doméstica, o acesso facilitado a armas de fogo não se constitui como uma medida de proteção.

No espaço público, o argumento do porte de arma para mulheres como instrumento de defesa desconsidera o fator surpresa que boa parte das ações violentas com arma de fogo se utilizam, além de agravar o cenário de outras violências que são perpetradas neste espaço como assaltos, brigas de trânsito, etc. Essa é uma realidade que afeta inclusive agentes de segurança treinados para atuar em situações de risco (IPEA, FBSP, 2020).

Além disso, a circulação de armas de fogo expõe ainda mais ao risco de morte os grupos que já são altamente vulneráveis à violência letal. É o caso de mulheres trans e travestis, vitimadas por arma de fogo em 47% dos casos letais notificados em 2020, como informa a Associação Nacionais de Travesti e Transsexuais (Antra), e de mulheres negras, que representam 68% das mulheres vítimas de homicídio no país, de acordo com dados do SIM-DATASUS.

No Rio de Janeiro, no âmbito da prefeitura, tem se levantado nas últimas semanas debates sobre a possibilidade do armamento da guarda municipal. Somadas às medidas de flexibilização da posse e porte de armas e munições, a possibilidade de armar mais agentes de segurança pública também pode resultar na intensificação na violência contra mulheres. Isso pode ocorrer tanto no espaço privado, com a possibilidade de guardas retornarem armados para o ambiente doméstico, quanto no espaço público, diante da possibilidade destes agentes recorrerem a armas de fogo em conflitos até então mediados sem uso de arma letal, sobretudo contra mulheres que trabalham na rua, como camelôs, ambulantes, e trabalhadoras sexuais, grupos que já lidam recorrentemente com a truculência da guarda municipal.

A flexibilização das legislações relativas ao armamento não se apresenta como resposta para a redução da violência contra mulheres, visto que amplia os desafios para o enfrentamento deste fenômeno e os riscos de agravar a letalidade feminina. Tampouco a resolução dos problemas que são estruturais no modelo de segurança pública do país se resolvem com a transferência da responsabilidade do Estado para a população, como propõem as medidas de flexibilização.

Nesse mês de março, que é marcado anualmente pela celebração do Dia Internacional da Mulher, somos também marcadas pelo acirramento da pandemia do coronavírus no Brasil, onde a vida de mulheres tem sido ameaçada cotidianamente não só pela violência de gênero, mas pela COVID-19. É estarrecedor que nesse contexto, uma das principais preocupações das autoridades públicas seja a democratização de mecanismos de produção da morte, e não de uma agenda de preservação da vida.

*Raquel Willadino – Diretora do Observatório de Favelas
Thais Gomes – Coordenadora Executiva do Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas 
Natalia Conceição Viana – Pesquisadora do Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas
Isabele Sales dos Anjos – Pesquisadora do Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas

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