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Escolas na linha de tiro: Impactos dos conflitos armados na educação pública

Diagnósticos sobre como a “política de guerra às drogas” prejudica a educação na Maré e nas favelas e periferias cariocas em geral

Por Isabella Rodrigues

Ter escolas fechadas ou correr risco de vida no trajeto escolar são situações rotineiras para estudantes de favelas e periferias do Estado do Rio de Janeiro. Este ano, no Conjunto de Favelas da Maré, essa realidade se tornou ainda mais recorrente com a realização de 13 operações policiais até então. No dia 5 de maio, caveirões do Batalhão de Operações Policiais Especiais invadiram o CIEP Elis Regina atrás de criminosos que se refugiaram na escola. Mais recentemente, em 18 de maio, a 12ª operação policial na Maré durou mais de 10 horas e impediu o funcionamento de 22 escolas municipais. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, quase 8 mil alunos ficaram sem aula. Por conta dos confrontos, as atividades de páscoa e dia das mães foram canceladas em várias redes de ensino.

Helicóptero da polícia militar sobrevoa escola na Nova Holanda, Conjunto de favelas da Maré. Foto: Rosilene Miliotti

Para além da explanação dos acontecimentos, discutir e pensar os impactos que esse tipo de situação gera no aprendizado e no psicológico dos estudantes faz-se necessário em um ambiente de constante violência. Para Laerte Breno, educador popular e fundador do projeto socioeducativo UniFavela, é preciso criar uma metodologia de segurança pública para dentro desses espaços. “Essas favelas precisam ter um plano de contingência que seja estudado, que tenha participação da sociedade civil para, aí sim, a gente ter resultado. Então, se isso não for colocado em estudo, em análise, vai acontecer o que aconteceu nos últimos meses e até nos últimos anos, como, por exemplo, um estudante ser baleado no trajeto de ida pra escola”, diz. Em 2018, Marcus Vinícius, de 14 anos, foi alvejado no caminho para a escola durante uma operação da Polícia Civil e do Exército na Maré.

Segundo a 7ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, da Redes de Desenvolvimento da Maré, ao longo de 2022, as atividades escolares foram suspensas por 15 dias nas 16 favelas da Maré em decorrência da violência armada. O monitoramento também aponta que 62% das operações policiais aconteceram próximo a escolas e creches, contrariando o pedido da ADPF das Favelas de absoluta excepcionalidade nos perímetros em que estão localizadas as unidades escolares e de saúde. Ainda, a edição de 2017 do Boletim relata que os confrontos provocados tanto pela polícia quanto por grupos armados resultaram em 35 dias de escolas fechadas naquele ano e que ​​se mantida essa dinâmica, os estudantes da Maré perderiam cerca de 2 anos e meio de escolarização ao final dos 14 anos do ciclo escolar.

Laerte Breno, educador popular e fundador do projeto socioeducativo UniFavela. Foto: Antoine Horenbeek

“Foi uma realidade duramente afetada: aulas suspensas, atraso no conteúdo, tem o abalo psicológico de além de você lidar com o exame em si, o Exame Nacional do Ensino Médio, você lida com os impactos psicológicos da violência armada que está ali presente na porta da sua casa. Se a gente não reconhecer essa disparidade, a gente vai entrar no papel de normalização da barbárie”, pontua Laerte quando questionado sobre sua vivência acadêmica no território.

De acordo com a pesquisa Tiros no Futuro: Impactos da guerra às drogas na rede municipal de educação do Rio de Janeiro, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), a política de Guerra às Drogas reproduz uma rotina de confrontos entre a polícia e grupos que controlam o varejo de drogas sem resultados eficientes para reprimir o tráfico de armas e drogas, principal justificativa para a realização das operações policiais. Os tiroteios intensos acontecem muitas vezes em horário escolar, prejudicando o funcionamento das escolas, colocando em risco a vida dos estudantes e impactando diretamente no desempenho destes. Como mostram os dados da pesquisa, a exposição aos constantes episódios de violência aumenta as chances de reprovação, evasão escolar e afeta a renda futura desses indivíduos. Além disso, aponta que a taxa média de reprovação no 5º ano das escolas da rede municipal do Rio de Janeiro em 2019 foi de 3,1%, percentual que aumenta para 4,9% no caso de escolas que registraram ao menos seis operações em seu entorno.

Cartum de André Dahmer ilustra pesquisa “Tiros no Futuro: O impacto da guerra às drogas na educação municipal do Rio de Janeiro”, do CESeC – Divulgação

Investimentos na Guerra às Drogas e na Educação

No relatório Um Tiro no Pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo, o CESeC estimou quanto do orçamento público foi gasto na implementação da lei de drogas no Rio de Janeiro e em São Paulo. De acordo com Rachel Machado, socióloga e pesquisadora do CESeC, no Rio de Janeiro foram gastos um bilhão de reais para processar, julgar e encarcerar pessoas majoritariamente negras e moradoras das favelas e periferias. “Com esse valor seria possível custear a educação de 252 mil alunos em uma escola do ensino médio, construir 121 escolas para mais de 77 mil novos alunos, custear por um ano inteiro a educação universitária de mais de 32 mil alunos da UERJ, que é uma universidade de caráter democrático por motivos de cotas e essas vagas poderiam ser de alunos oriundos de favelas e periferias”, esclarece.

Em 2017, ano em que a pesquisa foi realizada, o investimento público destinado para a educação no estado do Rio de Janeiro foi de R$ 1.999.931,23 conforme dados do Portal de Transparência do Governo Federal, cerca de 97% menor do que o investimento destinado para a implementação da lei de drogas. Em 2022, esse gasto diminuiu ainda mais, totalizando pouco mais de 500 mil reais. Nos últimos cinco anos, o investimento para a educação recuou e é o menor em dez anos. Enquanto que, dos 1 bilhão investidos na Guerra às Drogas, somente para a Polícia Militar foram destinados mais de 300 mil reais.

Além do mais, inseridas em um contexto de violência, as escolas experimentam a desconstrução de lugar de segurança. A série de situações de crianças vitimizadas pelos conflitos armados nesses territórios se contrapõe ao compromisso do Estado com a educação a todos os grupos sociais, assegurando “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, previsto no artigo 53, do capítulo IV do Estatuto da Criança e do Adolescente. “O Estado deveria garantir que a escola fosse um lugar de segurança, de sociabilidade, de produção de conhecimento, mas, ao invés disso, o Estado interrompe aulas, atendimentos de saúde, coloca a população sob estresse e sob risco de vida”, afirma Rachel.

Pichação com os dizeres “muito tiro pouca aula, pouca aula mais bandido!” localizada próxima a passarela 9 da Avenida Brasil. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas

Próximo a passarela 9 da Avenida Brasil, uma pichação se destaca na lateral de um viaduto com os dizeres “muito tiro pouca aula, pouca aula mais bandido!”. O abandono escolar se relaciona com o ingresso de crianças e adolescentes aos grupos que controlam o varejo das drogas. É o que mostra a pesquisa Rotas de Fuga, de realização do Observatório de Favelas, iniciada em 2004, feita a partir de entrevistas com 230 jovens ligados à rede do tráfico de drogas em 34 favelas cariocas. Os resultados do mapeamento mostram que 93% abandonaram a escola, sendo que quase a metade (46%) o fez entre os 11 e os 14 anos, mesma faixa etária onde predomina o ingresso no tráfico e o início do consumo de drogas.

O poder bélico do Estado passou a ser normalizado nas favelas e periferias, o que faz com que os conflitos armados e os diversos episódios de violação de direitos dos cidadãos desses locais sejam desconsiderados. O custo destinado para essa política de estado poderia melhorar a infraestrutura das escolas, garantir salários melhores aos professores, fornecer segurança para esses espaços e criar medidas para diminuir a evasão escolar. Ao contrário, vemos o dinheiro público gasto com armamentos, manutenção de caveirões e helicópteros e uma pequena parcela em inteligência e informação. Recursos que poderiam ser utilizados para garantir a vida da população que já sofre historicamente com a negação dos direitos básicos e que vê na educação um caminho para melhorar as condições de vida. Dessa forma, o abismo social se mantém sem expectativa de mudança.

A política de drogas brasileira foi classificada a pior segundo o levantamento divulgado em novembro de 2021 pelo Global Drug Policy Index que avaliou o desempenho de 30 países com relação às recomendações das Nações Unidas sobre direitos humanos, saúde e desenvolvimento. Este fracasso pode ser justificado por dois extremos: alto investimento em repressão ao varejo de drogas e baixo investimento em políticas públicas de saúde para usuários de drogas, educação e cultura. As operações policiais não atuam efetivamente para acabar com a circulação de drogas, mas causam a morte de pessoas e geram prejuízos em diversos setores, reforçando o racismo institucional.

“Se de um lado a guerra às drogas não é eficaz olhando como política pública de enfraquecimento do tráfico, por outro lado é extremamente eficaz por conta dessa face bélica de controlar corpos, territórios, encarcerar e matar pessoas majoritariamente negras e moradoras de favelas e periferias”, finaliza a pesquisadora.

Na busca de diminuir os impactos

Em 2021, em cerimônia no Complexo da Maré, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro renovou o acordo de cooperação com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha para incorporar o Programa Acesso Mais Seguro nas escolas da Rede Municipal de Ensino localizadas em áreas de risco. O programa tem como principais objetivos mitigar os riscos, orientar professores e alunos e planejar ações em conjunto nas unidades escolares e nos territórios.

Mônica Monteiro, professora da rede pública de ensino, atua em dois CIEPs na Maré. No CIEP Hélio Smidt, na comunidade Parque Rubens Vaz, os servidores seguem o protocolo definido pela Secretaria Municipal de Educação que segundo a professora, consiste na substituição das aulas presenciais para o atendimento remoto, além da construção de relatórios administrativos. Já no CIEP Professor César Pernetta, da rede estadual, as estratégias são definidas pela escola: “Este ano, após uma operação policial, fazemos ciclos de debates para escuta dos alunos”, diz Mônica.

“Eu compreendo que os conflitos reduzem as oportunidades de aprendizagem escolar, colocando os alunos em outro espaço de aprendizagem que, frequentemente, não garante os direitos básicos dos cidadãos, trazendo elementos que não dialogam com a escola: violência entre pessoas, segregação, confinamento, estresse, pânico, valores distorcidos, entre muitos outros. Portanto, desconstruir sentimentos pós operação tem sido constante e nem sempre conseguimos atingir a todos”, completa.

Desenho de criança mostra tiros partindo de helicóptero da polícia. Foto: Reprodução/Redes da Maré

Em contrapartida às incursões violentas, organizações da sociedade civil se mobilizam para diminuir os impactos dos conflitos armados e desnaturalizar a violência atrelada aos territórios favelados e periféricos por meio de ações que tensionam o poder público. Mensalmente acontecem reuniões do Fórum Basta de Violência! Outra Maré é possível na Escola Municipal Bahia, localizada na altura da passarela 7 da Avenida Brasil. A iniciativa, criada em 2017, é um espaço de articulação política entre organizações da sociedade civil, moradores e trabalhadores do Conjunto de Favelas da Maré que busca pensar e construir estratégias coletivas relacionadas ao direito à segurança pública na Maré.

Em outra ação, no ano de 2019, a Redes da Maré reuniu e entregou à Justiça mais de 1.500 cartas e desenhos feitos por moradores, sobretudo crianças do conjunto de favelas, que relatavam suas vivências no território durante os confrontos armados. As cartas estavam acompanhadas de uma petição pedindo para que fosse restabelecida a Ação Civil Pública da Maré, que visa a redução de danos e riscos durante as operações policiais e que foi suspensa naquele ano. Por conta da iniciativa, as “Cartas da Maré” repercutiram nacional e internacionalmente e sensibilizaram o Desembargador Jessé Torres que restabeleceu a ação coletiva.

Não bastassem os estigmas negativos atribuídos aos territórios populares, a educação, ferramenta fundamental para traçar caminhos de superação das desigualdades, é afetada pela força bélica do Estado. Sem resultados, essa política apenas reforça um ciclo de violência que tira a vida de pessoas, dentre as quais crianças e adolescentes em horário escolar, e que chancela a atuação de agentes do estado que, frequentemente, violam direitos dos moradores destas regiões. A influência de grupos armados nos territórios é uma realidade inegável, contudo as tentativas do Estado de enfraquecê-los, além de serem comprovadamente falhas, prejudicam iniciativas educacionais que não tem metade do investimento aplicado nesse regime e, no entanto, são capazes de oferecer oportunidades e possibilidades de futuro às crianças, adolescentes e jovens.

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