...
Search
EN PT ES

Enchentes em Belford Roxo e o racismo ambiental na infraestrutura urbana

Escassez de políticas públicas, necessidade de adaptação climática e desigualdades socioambientais estão entre as questões evidenciadas pelas fortes chuvas no Rio.

Por Isabella Rodrigues

As chuvas de verão desencadearam desastres no Rio de Janeiro, em particular, enchentes que atingiram a região metropolitana, resultando em milhares de afetados, incluindo desabrigados e ao menos 11 vítimas fatais entre os dias 13 e 14 de janeiro deste ano. Situações como esta, recorrentes ano após ano, tornam-se ainda mais preocupantes devido ao agravamento de eventos climáticos extremos.

Dentre as regiões mais atingidas, destaca-se o município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Localizada abaixo do nível do mar, a região se torna propensa a enchentes, contudo, é possível destacar a falta de manutenção no sistema de drenagem da região como um agravante das inundações.

Como sinalizou o vice-governador e governador em exercício do Rio de Janeiro à época, Thiago Pampolha, a casa de bombas do Canal do Outeiro tinha 2 bombas realizando a drenagem de 5 que deveriam estar em funcionamento, o que dificultava o escoamento das águas.

Criancas tomam banho no valao, logo apos chuva forte. Belford Roxo, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. 2023. Foto: RaH BXD/ Imagens do Povo.

As chuvas intensas e as recorrentes enchentes na Baixada Fluminense, para além de desastres naturais podem ser caracterizadas como uma faceta do racismo ambiental, que afeta diretamente os territórios mais vulneráveis da cidade e seus moradores, especialmente aqueles que já enfrentam desafios socioeconômicos.

Para a ativista climática, produtora cultural e integrante da Coalizão O Clima é de Mudança, Marcele Oliveira, o racismo ambiental pode ser compreendido como o processo de abandono estrutural da cidade, considerando a falta de políticas públicas para mazelas que permanecem no decorrer dos anos.

Dentre os problemas decorrentes do racismo ambiental estão a falta de saneamento básico, coleta de lixo, rede de esgoto, acesso à água potável e instalação de aterros sanitários. O termo “racismo” é colocado devido à predominância da população negra nos territórios mais atingidos pela escassez de políticas socioambientais.

A produtora destaca que em certos lugares há um histórico de enchentes que remonta muitos anos, não apenas devido ao aterramento para a construção civil e urbana, mas também devido à interferência no fluxo dos rios e consequentemente na alteração da dinâmica natural do ambiente ao redor dos cursos d’água.

“Quando habitamos colonialmente os lugares, tal qual diz Malcom Ferdinand em ‘Ecologia Decolonial’, colocamos uma imposição de forma de viver, que é a nossa forma de viver capitalista, desenvolvimentista, para a natureza”, diz.

Mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas por eventos climáticos decorrentes das fortes chuvas nos anos de 2021 e 2022 no estado do Rio de Janeiro, conforme dados divulgados no Mapa da Desigualdade 2023, elaborado pela Casa Fluminense.

Ainda segundo o mapeamento, cerca de 48 mil residências foram danificadas ou destruídas devido a esses eventos, resultando em prejuízos significativos. Estima-se que os danos em infraestruturas públicas e habitações tenham totalizado 487 milhões de reais em decorrência de alagamentos, enchentes e deslizamentos.

Favelas e periferias muitas vezes são negligenciadas pelas políticas públicas urbanas, resultando em condições precárias de moradia, falta de acesso a serviços básicos e maior exposição a desastres naturais. A interseção entre marcadores de raça, território e pobreza, torna esses territórios mais vulneráveis a eventos como enchentes.

Por vezes, essas áreas também enfrentam sérios desafios relacionados ao saneamento básico precário, o que resulta em maior incidência de doenças, baixa qualidade da água e aumento das ilhas de calor devido à falta de áreas verdes e cobertura vegetal.

As mudanças climáticas são um componente a somar nesse cenário, uma vez que contribuem para a intensificação e frequência de eventos climáticos extremos. “Somado à crise climática, que é fruto do aquecimento global causado pelas emissões de gases, o uso descontrolado de petróleo, a designação do lixo, tudo isso interfere para que milimetragens de chuva que aconteciam uma vez por ano, aconteçam a cada 15 dias”, destaca Marcele.

Estrago ocasionado pela forte chuva na cidade. Entrada da favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, Brasil. 2023. Foto: Selma Souza / Imagens do Povo

Resistência e solidariedade nas ruas 

A fundadora e gestora da ONG Sim! Eu Sou do Meio, Debora Silva, detalhou as ações imediatas implementadas para ajudar os afetados pela pior enchente do município. No dia 13 de janeiro, a equipe da instituição realizou um mapeamento das famílias atingidas e identificou os locais mais castigados pelas enchentes. Ainda, organizaram uma cozinha solidária para fornecer refeições, como café da manhã, almoço e jantar para as vítimas.

Diante da urgência da situação, iniciaram imediatamente os pedidos de doações, pois os recursos disponíveis não eram suficientes para atender à alta demanda de pedidos de socorro. “Em uma semana atendemos mais de 14 mil pessoas com refeições, entregamos 100 camas box, 7 mil kits de limpeza e higiene e mais de 8 mil fardos de água”, conta Debora.

A gestora relatou uma série de desafios para garantir que as ações de ajuda chegassem às pessoas afetadas. Algumas famílias, em forma de protesto, bloquearam as ruas com seus móveis, dificultando o acesso às áreas atingidas. Além da inacessibilidade de áreas devido ao acúmulo de água, como no caso do bairro Recantus, onde as inundações persistiram por sete dias.

Joana enfrenta dificuldades tanto em relação ao estado psicológico quanto à perda de itens essenciais como sofá, geladeira, fogão e cama. Foto: Arquivo pessoal.

Para atender famílias do programa Minha Casa Minha Vida, soluções improvisadas, como o içamento de refeições por balde até o 4º andar, foram adotadas diante da impossibilidade de sair das residências inundadas.

Moradora de Belford Roxo, voluntária da Sim! Eu Sou do Meio e mãe solo, Joana D’arc Alcântara, 41 anos, compartilhou suas experiências durante o desastre, destacando os danos materiais e também psicológicos: “Não pode chover um pouquinho que já ficamos assustadas com medo da enchente”.

Joana, nascida e criada na região, enfrenta recorrentes desafios com as enchentes locais. Mas segundo ela, a enchente de 13 de janeiro foi assustadora, com a água levando seis horas para baixar. Mal se recuperando de um episódio semelhante em abril de 2022, a moradora enfrenta dificuldades tanto em relação ao estado psicológico quanto à perda de itens essenciais como sofá, geladeira, fogão e cama.

 

 

 

A moradora mencionou a falta de ajuda do Estado e autoridades, expressando sua gratidão pela assistência promovida pela SESM com a doação de uma cama nova, por uma igreja local e por uma empresa que doou materiais de construção.

“Tenho esperança de que sejam feitas a dragagem do rio Botas e uma grande limpeza nos bueiros, pois qualquer chuva já está tudo alagado. É muito ruim, por conta da sujeira também”, enfatiza Joana.

Segundo Debora, as famílias afetadas pelas enchentes enfrentaram dificuldades extremas sem o apoio adequado das autoridades locais: “estavam nas filas intermináveis da Defesa Civil, CRAS, dormindo de um dia para o outro, sem comida, água, e sem esperança pois perderam seus bens”.

Ainda, as famílias, cadastradas para receber o Cartão Recomeçar, benefício pago pelo governo estadual à população atingida por desastres naturais,  enfrentaram burocracia e desorganização nos órgãos municipais. “As pessoas ficam sendo jogadas de um lado para o outro, sem apoio e esperança de quem vai dar resposta e socorrer em suas necessidades”.

Debora destacou as ações da SESM para melhorar a infraestrutura das casas de várias famílias, incluindo medidas como barreiras de contenção e nivelamento do solo, e até aulas de educação em direito em parceria com a Defensoria e Ouvidoria, visando facilitar o acesso aos benefícios do Governo Federal e Estadual.

Além disso, enfatizou o empenho da organização na sistematização dos dados coletados para expor a realidade enfrentada por Belford Roxo durante as enchentes, a fim de evidenciar a falta de ação planejada por parte do Governo Municipal, que se eximiu de responsabilidade, caracterizando os eventos como fenômenos naturais.

RJ não é Disney

A ausência de políticas públicas eficazes agrava esses problemas, deixando os territórios já marginalizados à mercê dos desastres naturais e normalizando situações de desigualdade e vulnerabilidade que não deveriam ser aceitas como normais.

Causas como má gestão dos recursos naturais, ocupação irregular do solo e falta de investimento em infraestrutura são apontadas como principais fatores de risco, demonstrando a necessidade urgente de medidas preventivas e de adaptação.

Estrago ocasionado pela forte chuva na cidade. Favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, Brasil. 2023. Foto: Selma Souza / Imagens do Povo

“É uma interseção desse reflexo do abandono das cidades como um todo, principalmente das periferias e favelas, que são as mais afetadas. Estamos falando de Zona Oeste, da Baixada Fluminense, de favelas da metrópole”, sinaliza Marcele. “A nossa preocupação é que seja olhado de forma não só técnica e científica, mas redesenhando a cidade para um modelo que não só se adapte à crise climática, mas também exerça ações que possam combater diretamente. Estamos falando de hortas, de tetos verdes, de coleta seletiva, de educação ambiental”.

A partir da necessidade de uma plano de adaptação climática para o Rio de Janeiro, surge a campanha “RJ não é Disney”, que tem como objetivo enfrentar o horizonte de tragédias que assolam as comunidades e periferias, e também impactam o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. A ONG Sim! Eu sou do Meio está entre as organizações que assinam, assim como a Coalizão O Clima é de Mudança.

O movimento surge junto com a trágica realidade vivida pelas chuvas em janeiro, com a perda de 11 vidas durante o surgimento da campanha, e desempenha um papel na cobrança tanto do Governo Estadual quanto Federal, por meio de um grupo interministerial de trabalho.

A campanha “RJ não é Disney” surge a partir da necessidade de um plano de adaptação climática para o Rio de Janeiro. Foto: Filipe Nunes.

Marcele destacou a importância da sociedade civil em identificar o que realmente está funcionando e quais são os pontos de atenção. Para ela, o mapeamento realizado por quem vive o dia a dia dos territórios afetados é o mais eficaz. A ativista também reforçou a importância de diversas organizações que promovem tecnologia verde, ações sociais sustentáveis e educação ambiental:

“Não faz sentido pensar em adaptação sem pensar nessas organizações. Assim como eu sou uma pessoa atravessada pelo racismo ambiental, elas começam a pensar sobre essa narrativa a entender esse problema global que só pode ser resolvido localmente. É necessário financiamento para que localmente possamos seguir pensando alternativas, mapeando possíveis soluções e criando uma adaptação verdadeira”, finaliza.

Medidas de precaução, como a construção de sistemas de drenagem eficientes e a desocupação de áreas de risco, são necessárias para lidar com as consequências do racismo ambiental. Mas, a negligência das autoridades em investir e manter infraestrutura essencial, como a falta de manutenção da casa de bombas do Canal do Outeiro em Belford Roxo, destaca a urgência de uma abordagem mais adequada para enfrentar esses desafios.

Uma agenda de adaptação climática inclusiva que considere a relação entre mudanças climáticas e desastres naturais faz-se necessária para garantir a segurança dos moradores nos territórios afetados. Destaca-se a urgência de políticas públicas eficazes e medidas de longo prazo para combater o racismo ambiental e promover a justiça climática.

LEIA TAMBÉM!

Comunicação

“A gente não quer que essa tradição morra”: A luta das quebradeiras de coco babaçu no Maranhão

Comunicação

A influência da Capoeira Angola na vida das crianças e adolescentes do Bairro São Tomáz

Comunicação

Pobreza menstrual e seus impactos: Relatos de uma Natal que sangra

Copyright – 2021 ©. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por: MWLab Digital