Em artigo, curador do Galpão Bela Maré aponta compromisso do ArtRio para um futuro da arte mais capilar, permeável e territorialmente implicado.
Texto: Jean Carlos Azuos*
Ir à feira tem seus muitos sentidos, e dentre eles, obviamente, o gesto de comprar. A Feira de Arte do Rio, que acontece desde 2011, é reconhecida como um dos principais eventos de arte da América Latina, e reúne as principais galerias do país na cidade anualmente.
A Feira deste ano se dividiu entre os espaços TERRA, Pavilhão Central da Marina da Glória e MAR, área da esplanada. Reuniu mais de 60 galerias e 15 instituições artísticas nacionais e internacionais, além de contar também com os programas Vista, Solo, Expansão e Mira, interligados a um conjunto de programações.
Nesta famigerada volta da Feira, após a pandemia, as expectativas estavam adensadas e a organização ofertou surpresas para seus públicos, percebidas nas expansões estruturais e arquitetônicas. O projeto, assinado pelo arquiteto Pedro Évora, abrigou estandes, lojas, praças de alimentação e espaços de convivência em diálogos com a paisagem.
No que concerne às presenças, destaco no pavilhão TERRA o estande da galeria paulista Galatea que investiu em proposta solo do artista carioca Allan Weber, cria e morador da favela 5 Bocas em Brás de Pina. O estande apresentou aos visitantes: ‘Allan Weber: Traficando arte’ – variadas produções do artista, que debruça sua poética nas visualidades e símbolos de favelas – dando sentido de alteridade, subjetividade e produção estética a partir de elementos ordinários do cotidiano.
Allan, que também organiza e pensa a Galeria 5 Bocas, estava presente na feira com seu estande institucional (no Pavilhão MAR), com obras de Ana Claudia Almeida, Patfudyda, Malvo, entre outres. O artista participou recentemente da exposição Misturas – mostra que celebrou os 10 anos do Galpão Bela Maré – e integra atualmente a residência-formativa da ELÃ-Escola Livre de Artes.
Importante vivermos esse momento, pois materializa reversões lógicas e políticas da ocupação do espaço, no deslocamento das estruturas que ainda concentram muitos lastros da branquitude e um circuito canônico da arte. Na mesma medida, celebro a força e a relevância do estande da CasaNem, que reuniu trabalhos de nomes importantes da cena como de Agrippina R. Manhattan, e destinou a venda das obras para a manutenção e permanência da Casa. CasaNem é uma Casa de acolhimento para LGBTQIAPNB+ em situação de vulnerabilidade social no Rio de Janeiro. No percurso pela Feira dão a ver de importância similar os especiais e notáveis estandes Artistas Latinas, Rede NAMI e das pessoas artistas premiadas pelo prêmio FOCO.
O programa SOLO, inédito e surpreendente, de curadoria de Ademar Britto, trouxe à cena projetos expositivos originais de nove artistas brasileiros, de diversas regiões e com diferentes percursos, materialidades e poéticas. Ressalto as produções de Luana Vitra, Uýra, Wallace Pato, Elian Almeida e Maxwell Alexandre.
Outro ponto de destaque é que a edição deste ano contou com painéis e falas muito contundentes de curadores, artistas, galeristas, pesquisadores etc – nos convidando a conversas implicadas com a arte contemporânea, cultura e educação. As narrativas e escutas nestes encontros são insumos passíveis de repensar e reimaginar a Feira e seus sentidos, que seguem sendo construídos nas evidências que este texto esboça e nas delicadezas que as novas presenças e seus protagonistas revelam.
Neste sentido, considero que as presenças de jovens artistas chancelam uma compreensão do agora e suas urgências, entretanto, nos mobiliza atenções para as armadilhas. Chegar à Feira tem sua importância e isso é incontestável, mas essa chegada precisa estar ancorada em um compromisso coletivo para que não conforme uma mera ‘performação da presença’, uma vez que este é um movimento que situa essas pessoas no jogo e nas interseções do circuito. Diante de tudo, me parece que a própria trajetória da Feira vem construindo esses traquejos: os espaços para as trocas entre os semelhantes e dessemelhantes; a programação; a presença de escolas de formação em artes e de instituições de caráter social; e outras conciliações que encaminham a cuidados com as presenças e com as possibilidades de encontros e mobilidades.
Desejo pois, que a configuração dada transponha as tendências e as maliciosas lógicas de mercado, para que seja possível leituras simbólicas para uma Feira de Arte avessa aos vislumbres, exotismos e fetiches, entretanto atenta às políticas nos debates das violências estruturais e generosa a uma redistribuição econômica.
A fim de atar essa escrita e criar pontes entre nós, do Observatório de Favelas, e a ArtRio, é importante evidenciar e celebrar que a ELÃ – Escola Livre de Artes e o Galpão Bela Maré transbordaram ali ao longo dos dias. nos estandes, nas interlocuções e em pessoas que felizmente nos reconhecemos nas práticas e caminham por entre as cosmovisões apostadas por nossa instituição e dos nossos projetos e ações do eixo Arte e Território.
Animado, percebo que algumas de nossas iniciativas contribuem para a conformação desta cena contemporânea e suas aberturas e, neste sentido, por passos contínuos operamos no presente na proposição de alargamentos da democratização e difusão dos estreitamentos artístico-pedagógicos nos diálogos atentos com o mercado da arte. Tudo isto nos aproxima da ArtRio e nos coloca em compromisso, como indivíduos, facilitadores, instituição, para um futuro da arte mais capilar, permeável e territorialmente implicado.
*Jean Carlos Azuos é cria da Maré, curador no Galpão Bela Maré e doutorando no Programa de pós graduação literatura, cultura e contemporaneidade da PUC-Rio. Pesquisa curadoria na perspectiva contra-colonial e as presenças negro-indígenas, LGBT+ e pessoas faveladas na composição política de outras cenas na arte contemporânea.