...
Search
EN PT ES

Descentralização cultural: Democratizando o acesso à arte

Galpão Bela Maré, Pavilhão Maxwell Alexandre e FAIM Festival se destacam com iniciativas artísticas para além dos grandes centros urbanos no cenário da arte contemporânea no Rio de Janeiro.

Por Isabella Rodrigues

Entre o vai e vem das motos, bares agitados, comércios e circulação de pessoas da Via Ápia, na Rocinha, surge o Pavilhão 2 de Maxwell Alexandre. Cria do território, o renomado artista, conhecido por sua abordagem provocativa e crítica da sociedade, preencheu o espaço com pinturas feitas sob caixas do achocolatado Toddynho. As imagens retratam estudantes vestindo o uniforme da rede pública praticando atos de violência contra o mascote da Danone, o Dino.

As obras de Maxwell também marcaram presença em um stand solo no ArtRio deste ano, uma das principais feiras de arte da América Latina, que aconteceu entre os dias 13 e 17 de setembro, na Marina da Glória. Nesta edição, o Galpão Bela Maré, equipamento cultural do Observatório de Favelas, sediado no Conjunto de Favelas da Maré, também teve um stand próprio através do Programa Expansão, que reuniu 16 instituições culturais e projetos sem fins lucrativos que desenvolvem a arte através de ações sociais.

Obra de Maxwell Alexandre no Pavilhão 2, Rocinha. Foto: Isabella Rodrigues

Além destas iniciativas, em Imbariê, terceiro distrito de Duque de Caxias, o FAIM – Festival de Artes de Imbariê, une arte e formação artística para crianças, adolescentes e jovens do território, a fim de democratizar o acesso à cultura. Para além de destacar o talento artístico que emerge nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, estes três projetos demonstram a importância de fomentar espaços culturais e oportunidades para moradores destes territórios.

A partir de dados disponibilizados pela Prefeitura do Rio, o estudo Equipamentos Culturais no RJ, de 2019, analisou a distribuição de espaços culturais pela cidade do Rio de Janeiro, mostrando que a maioria está concentrada no centro e na Zona Sul do Rio. Essa disparidade geográfica impõe desafios consideráveis aos moradores de favelas e periferias, que muitas vezes enfrentam dificuldades de transporte, barreiras sociais e econômicas para participar plenamente da vida cultural da cidade. Reconhecer a necessidade de descentralizar espaços culturais significa incluir e representar a diversidade de experiências e narrativas presentes nos territórios periféricos.

Gráfico com equipamentos culturais por regiões da cidade do Rio de Janeiro a partir do estudo “Equipamentos Culturais do RJ”, de 2019.

Novas possibilidades de futuro

Nathalia Grilo, curadora de narrativas do estúdio e pavilhão de Maxwell Alexandre, enfatiza a importância de visibilizar o trabalho de artistas periféricos. Nathalia acredita que a arte deve ser acessível a todos e que limitá-la a um nicho exclusivo reduz a multiplicidade de vozes e narrativas que podem ser exploradas por meio da expressão artística. Maxwell Alexandre, com sua arte profética, aborda a relação entre desejo, consumo e desigualdade social, especialmente no contexto das grandes marcas que operam nas favelas.

Inaugurado em julho, o Pavilhão 2 apresenta a exposição “Entrega. one planet. one health”, conectada com a exposição em vigor na galeria Cahiers d’Art, em Paris. A mostra é uma reflexão crítica sobre como a publicidade e o consumo influenciam as comunidades, criando marcadores de poder através dos produtos. Ainda, as obras evidenciam a realização de um ímpeto de vingança contra o mascote símbolo da marca Danone, que projetou o desejo pela marca. Pavilhão 2 surge como a primeira galeria da Rocinha, onde “a grande feira de arte é a própria Via Ápia”, como Nathalia destaca. Ainda, desafia a ideia de que a arte deve ser imaculada e inacessível, convidando as pessoas a se envolverem e refletirem sobre questões importantes por meio da expressão artística.

Primeiro Pavilhão de Maxwell Alexandre, que vigorou em São Cristóvão. Foto: Reprodução / Pavilhão Maxwell Alexandre

Assim como o primeiro Pavilhão “Novo Poder: passabilidade”, que vigorou em São Cristóvão, a proposta parte da ideia de Maxwell mostrar seu trabalho fora do circuito oficial de arte contemporânea. Os pavilhões itinerantes de Maxwell Alexandre buscam criar um contato genuíno entre a arte, o público e o território. A curadora destaca a necessidade de fomentar e visibilizar o trabalho de artistas locais, especialmente quando esses artistas são oriundos desses territórios. “A importância desses espaços é fomentar esses artistas, é fazer com que as crianças [desses territórios] tenham contato com a arte desde cedo e de forma natural”, finaliza Nathalia.

Potência e possibilidades

Com 12 anos de atuação, o Galpão Bela Maré se consolidou como um importante centro cultural localizado no Conjunto de Favelas da Maré. Em sua primeira vez no ArtRio, um dos principais eventos de arte do país, o espaço contou com o lançamento da Campanha Bela + 10, que visa arrecadar fundos para a reforma do espaço. Os fundos arrecadados na campanha serão destinados à melhoria da acessibilidade e sustentabilidade do local.

Uma das atrações notáveis no stand do equipamento foi a linha do tempo que apresenta as principais atividades realizadas nos últimos 10 anos, destacando a importância do centro cultural na promoção da arte em comunidades periféricas e na quebra de barreiras culturais. Durante o evento, os visitantes tiveram a oportunidade de visualizar uma maquete mostrando como o espaço ficará após as obras.

Galpão Bela Maré, equipamento cultural do Observatório de Favelas, teve um stand próprio no ArtRio. Foto: Ramon Vellasco

“O Bela é um lugar onde há possibilidade de produzir, criar, difundir e fruir a arte contemporânea sem precisar sair do nosso território, sem precisar olhar outros territórios como centros, mas sim os nossos”, diz Anna Luisa Oliveira, coordenadora do Galpão Bela Maré. Anna enfatiza que a missão do espaço é promover o direito à vida por meio do direito à arte e à cultura a partir das favelas e periferias. Nesse sentido, o Galpão Bela Maré desenvolve programas educativos, residências artísticas e exposições que dialogam com públicos diversos, tendo as favelas e as periferias como lugares de potência e possibilidades, assim como seus moradores.

Exposição “Pista, Ritmo e Fluxo”, resultado da turma de 2023 da ELÃ. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas

As atividades desenvolvidas no Galpão se encaixam em dois eixos principais: educação e curadoria, que se interconectam. Entre as residências artísticas se destacam o “Vou Fazer Arte”, para adolescentes da Maré, e a “ELÃ – Escola Livre de Artes”, uma residência para artistas de favelas e periferias. Além disso, o Cine Bela, um cineclube, tem se fortalecido na difusão das produções de cinema nacional. As exposições organizadas pelo Galpão Bela Maré também ganham destaque, reunindo artistas e curadores de diversas regiões do Rio de Janeiro. Atualmente a exposição “Pista, Ritmo e Fluxo”, resultado da turma de 2023 da ELÃ pode ser visitada no espaço. A mostra reúne 15 artistas e propõe o baile como orientação poética e o ponto de partida dessa edição.

Nas palavras de Anna Luisa, a participação do centro cultural na ArtRio representa um marco significativo em seus 12 anos de existência. A coordenadora destaca a importância de participar de uma feira de arte como uma maneira de fortalecer o compromisso do Galpão Bela Maré e de expandir sua rede de colaboradores, convocando a comunidade a se envolver na Campanha Bela + 10 para apoiar a reforma do espaço.

As exposições organizadas pelo Galpão Bela Maré também ganham destaque, reunindo artistas e curadores de diversas regiões do Rio de Janeiro. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas

Durante a ArtRio, o Galpão Bela Maré também participou do Circuito Outros Centros no dia 16 de setembro, que possibilitou ao público conhecer não apenas o Bela Maré, como também a Galeria 535, na sede do Observatório de Favelas. Ambos os espaços se tornaram referências importantes na descentralização da produção e reflexão da arte contemporânea na cidade. Já no dia 17, aconteceu o lançamento da segunda edição do “Outros Centros – Guia Periférico Carioca das Artes Visuais“. O projeto tem como objetivo mapear, pesquisar e divulgar iniciativas ligadas às artes visuais em territórios populares, favelas, subúrbios e periferias do Rio de Janeiro.

O lançamento foi marcado por um bate-papo envolvendo representantes de duas das iniciativas participantes do guia: o Galpão Bela Maré e o Ghetto Colletiv, este último localizado no bairro de Engenho de Dentro. Anna Luisa e Junior Negão, diretor e curador do Ghetto Colletiv, compartilharam suas experiências e perspectivas sobre a cena das artes visuais em territórios periféricos. O evento salientou o compromisso do “Outros Centros” em fomentar e expandir a rede de projetos que se desenvolvem à margem do circuito artístico tradicional, fortalecendo outras centralidades culturais na cidade e contribuindo para a ampliação da cena artística.

Disputando narrativas nesse cenário, o Galpão Bela Maré mostra como a democratização das expressões artísticas e a descentralização de espaços culturais podem contribuir para a promoção de uma “ética baseada na estética visual”, como enfatiza Anna. O compromisso ético, social e estético do Bela Maré se traduz em trabalhos de qualidade e colaborações com artistas que também compartilham dessa visão de produção de arte contemporânea no país. A participação no ArtRio é um passo importante na busca pela igualdade de oportunidades no campo da arte e da cultura.

A gente quer comida, diversão e arte

Duque de Caxias, na Baixada Fluminense do Rio, anualmente recebe o Festival de Artes em Imbariê, popularmente chamado de FAIM. A iniciativa une arte e formação artística para crianças, adolescentes e jovens do bairro com o propósito de conectar pessoas de periferias, em especial Duque de Caxias, às artes visuais e à música. Idealizado por Osmar Paulino, cria de Imbariê e professor de geografia, o festival surge com a ideia de fazer uma revolução no território, uma resposta à necessidade de promover uma conexão entre cultura e prática política na região, onde boa parte da população enfrenta desafios socioeconômicos.

Osmar Paulino colando lambe-lambes nas ruas de Imbariê durante a pandemia. Foto: Paulo Oliveira

O FAIM começou em 2017 com um pequeno grupo de 10 pessoas, mas logo cresceu para se tornar um evento colaborativo, em 2018, com mais de dez artistas expondo suas obras, apresentações musicais e oficinas de arte em escolas públicas locais. Inspirado pelo Galpão Bela Maré, o FAIM viu a importância de trazer arte e cultura para territórios periféricos e começou a expandir suas atividades, criando um slam poético, um cineclube e com Osmar visitando outros bairros da Baixada Fluminense para conhecer diferentes práticas culturais.

Ao longo dos anos, o Festival continuou a crescer e evoluir, adaptando-se inclusive à pandemia em 2020, quando distribuiu mais de vinte mil cestas básicas e transformou o bairro em uma galeria a céu aberto com mais de 80 lambe-lambes enormes. O festival também criou um pré-vestibular comunitário e expandiu suas atividades para levar artistas periféricos a uma exposição no Museu de Arte do Rio (MAR). “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”, parafraseou Osmar referindo-se às ações realizadas durante o período pandêmico, quando foi preciso inovação e mobilização em meio às necessidades básicas da população e o desejo de movimentar a cena artística local.

Em 2023, o FAIM realizou sua primeira edição presencial pós-pandemia, com foco na infância a partir de uma perspectiva afrocentrada com a exposição “Ubuntwana: poder da infância”. O evento contou com a participação de 27 artistas da Baixada e outras periferias, reunindo mais de 800 pessoas. Osmar enfatiza que o FAIM vai além de um festival de arte; é um movimento artístico que busca usar a cultura como ferramenta de transformação social. “A gente quer oferecer a contemplação da beleza da arte para que as pessoas possam se entender como cidadãos e exigir mais. E, a partir daí, fazer a revolução”, completa o geógrafo.

Exposição “Ubuntwana: poder da infância”, realizada em 2023. Foto: Reprodução / FAIM

Em um cenário artístico historicamente marcado pela marginalização das favelas e periferias, iniciativas como o Galpão Bela Maré, o Pavilhão Maxwell Alexandre e o FAIM Festival se destacam como catalisadores de mudanças e narrativas que rompem com essa exclusão sistêmica. Ao desafiar a concentração da arte nos grandes centros urbanos, oferecem uma plataforma para artistas e criadores locais, apresentarem questões sociais inerentes a suas localidades e a necessidade de democratização cultural. Estas propostas se contrapõem a um sistema artístico que muitas vezes mantém desigualdades e desconsidera talentos provenientes desses territórios. Ações como estas afirmam que a arte contemporânea deve ser inclusiva, acessível e capaz de gerar reflexões e transformações em toda a sociedade, independentemente de onde esteja localizada.

LEIA TAMBÉM!

Comunicação

“A gente não quer que essa tradição morra”: A luta das quebradeiras de coco babaçu no Maranhão

Comunicação

Enchentes em Belford Roxo e o racismo ambiental na infraestrutura urbana

Comunicação

A influência da Capoeira Angola na vida das crianças e adolescentes do Bairro São Tomáz

Copyright – 2021 ©. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por: MWLab Digital