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Por favor, não atire! Estamos tentando salvar vidas no enfrentamento à Covid-19

Em 2021, operações policiais comprometeram a vacinação contra a Covid-19 na Maré por uma semana.

Texto: Ana Paula Godoi*

Cerca de 5 mil pessoas deixaram de ser vacinadas contra a Covid-19 ou tiveram seu esquema vacinal comprometido, durante um período de 7 dias, devido a operações policiais na Maré, conjunto de favelas localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, segundo dados do boletim Direito à Segurança Pública na Maré. O CMS – Centro Municipal de Saúde – Vila do João, que atende mais de 25 mil pessoas entre as favelas da Vila do João e Conjunto Esperança, foi uma das unidades que interromperam as atividades parcial ou integralmente por pelo menos 22 dias em 2021, fato que atrasou a aplicação de dezenas de doses da vacina. Na Maré, são vacinadas em média 650 pessoas diariamente para Covid-19. Porém, os impactos são ainda maiores se pensar em outros atendimentos.

Segundo Thiago Wendel, coordenador da área programática que compreende a região da Maré, aproximadamente 6.000 pessoas são afetadas diariamente com outros atendimentos que são interrompidos durante operações na Maré. A dimensão dos impactos da violência armada na saúde vai além do que os dados conseguem dimensionar. Já que os danos são também na saúde mental de moradores e profissionais da saúde. As operações policiais geram sobrecarga no serviço de saúde já que a demanda no dia seguinte fica maior, gerando ansiedade na população.

Thiago fala sobre o sofrimento que as operações policiais geram tanto nos profissionais de saúde, como na população. “Logo depois de uma operação as clínicas ficam lotadas e o número de casos de pacientes com crise de ansiedade aumenta. Se hoje a unidade fecha, amanhã quando abrir estará lotada e a maioria dos casos são ansiedade, síndrome do pânico, aflição. As pessoas começam a sofrer e vêm agitadas e ficam com medo do que pode ocorrer, além de lidar com o sentimento de perda de pessoas.”

Diante dessa situação, os mareenses e os agentes de saúde são afetados de forma comum e particular, pois os profissionais têm o papel de cuidar e continuar prestando um serviço, mesmo nessas condições. Wendel categoriza o sentimento de sofrimento em 3 partes:

“Primeiro porque nós somos seres humanos, além de profissionais, nós somos pessoas como a própria população que está aqui. Então, o primeiro sofrimento é a gente que tem que cuidar das pessoas, mas ao mesmo tempo não se sente seguro, isso é muito difícil.” Outras inseguranças também atravessam os profissionais desde que, se será possível voltar para suas casas, como com os moradores que ficam na Maré.

“O segundo sofrimento é lidar com as pessoas e com a dor delas que já está causando sofrimento, que por mais que para o profissional ao fechar a clínica ele possa ir embora, há a preocupação com o paciente que continuará diante de uma situação de violência.” Já o terceiro sofrimento é com os 6.000 atendimentos que são afetados, em alguns casos prejudicando o plano de cuidado de pacientes com curativos, por exemplo, e impactando no tempo de seu tratamento.

As unidades de saúde possuem um protocolo e uma estratégia para operarem em período de confrontos violentos: o Grupo de Acesso Mais Seguro. Esse grupo da unidade é formado por profissionais que sabem lidar com conflitos, inclusive de guerra, treinados pela Cruz Vermelha, que orienta como devem atuar e orientar os moradores do território, diante de situação de violência. Todas as unidades do município de Rio de Janeiro tiveram esse treinamento. O Acesso Mais Seguro é formado por uma equipe multidisciplinar. Então, é esse coletivo que faz a classificação diária da situação da violência armada na Maré e é quem decide se as unidades serão fechadas ou não. Também recebe informações de outros atores do território como ONGs que ajudam nesse fluxo que também contém conceitos e conhecimentos técnicos. Confira na tabela abaixo como é o protocolo e a estratégia utilizada pelo Acesso Mais Seguro:

A estratégia de Unidades de Saúde para lidar com operações policiais na Maré

Protocolos de segurança acionados em Unidades de Saúde em 2021. Fonte: CAP 3.1
*O acesso mais seguro não utiliza mais a classificação laranja

Uma pandemia maior que a Covid-19: a letalidade policial
Em 2020, o mundo presenciou a maior crise humanitária em 100 anos: a Covid-19, mas ainda assim, a segurança pública foi uma preocupação prioritária para ser possível enfrentar o coronavírus. Salvar vidas é algo que há anos os movimentos sociais buscam preservar em suas mobilizações, e ao se deparar com a pandemia sabia que esse seria um dos principais desafios.
Por isso, mais do que nunca, necessitava-se da suspensão das operações policiais. Moradores de favelas, coletivos, organizações e movimentos sociais perceberam a urgência dessa pauta. Até que o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, determinou a suspensão da realização de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante o período de pandemia, salvo em casos de excepcionalidade, devidamente informadas e acompanhadas pelo Ministério Público.

Lançamento Boletim Direito à Segurança Pública na Maré – Foto: Douglas Lopes

Segundo Camila Barros, coordenadora do projeto “De Olho na Maré” da Redes da Maré, “Esta decisão foi tomada liminarmente no âmbito da Arguição de Preceitos Fundamentais (ADPF) 635 ou “ADPF das Favelas”. De acordo com essa decisão, nos casos excepcionais de operações realizadas durante a pandemia, devem ser adotadas medidas para não se colocar a população em risco ainda maior, em termos da prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária realizadas por moradores e organizações que atuam nesses territórios.”

Dados levantados na publicação do Direito à Segurança Pública na Maré, ao longo do ano de 2020 e no primeiro semestre de 2021, mostram que aconteceram 24 operações policiais e em decorrência delas 12 pessoas foram mortas, 84 pessoas foram vítimas de violações de direitos fundamentais e as unidades de saúde tiveram por 15 dias seu funcionamento interrompido.
Enquanto a comunidade científica se empenhava para desenvolver uma vacina para imunizar a população o mais rápido possível para a contenção do vírus e salvar vidas, mesmo com as conquistas da ADPF, ainda ocorriam operações policiais.

Uma analogia muito utilizada e difundida durante esse período era de que “estávamos todos no mesmo barco”, que logo foi criticada ao trazer à tona a desigualdade social, em que estavam todos suscetíveis ao coronavírus, mas não nas mesmas condições. Refletir sobre o que significa operações policiais nesse cenário é literalmente imaginar um barco todo furado de bala, tentando tapar os buracos para não afundar e sobreviver.

“O início da pandemia não restringiu a manutenção das operações policiais na Maré. Entre março e abril de 2020, período em que o município do Rio de Janeiro e a Maré chegaram próximo ao primeiro pico de contaminação pelo coronavírus, foram realizadas cinco operações policiais nas favelas da Maré, frequência superior ao mesmo período em 2018 e 2019”, de acordo com Camila.

Enquanto a sociedade processava a dimensão da pandemia, gerar informação, dados e protocolos tornou-se outro desafio. Como comunicar métodos de prevenção em massa para os quatro cantos do mundo? Além disso, fake news surgiram e métodos sem comprovação científica também, tornando a tarefa ainda mais complexa. As pessoas ficaram confusas no que confiar e quais orientações seguir, principalmente as mais vulnerabilizadas. Por isso, tornou-se fundamental a produção de uma comunicação eficaz e a produção de dados para tentar compreender a proporção desta realidade e traçar soluções possíveis.

Diante disso, Organizações sociais e lideranças que atuam na Maré, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro com cerca de 140 mil moradores, já sabiam que precisavam agir em algumas frentes como, por exemplo: alimentação, comunicação, produção de dados e na providenciação de itens de higiene pessoal. O histórico processo de ausência de garantia de direitos nas periferias tornou ainda mais complexo a atuação na redução de danos do coronavírus.

A resposta para a pandemia vem da favela para a favela
Todo esse processo de mobilizações sociais resultou no “Vacina Maré”, iniciativa da Fiocruz, em parceria com a Redes da Maré e a Prefeitura do Rio, que resultou em uma campanha de vacinação em massa que imunizou cerca de 37 mil moradores, em uma ação que uniu a sociedade civil, secretarias de saúde, educação, associações de moradores, instituições que já se articulavam apoiando o cuidado dos mareenses e a própria Fiocruz, que inclusive é localizada de frente para uma das favelas da Maré. Thiago Wendel coordenou o processo de vacinação na Maré e destaca como foi uma realização para ele, que é nascido e criado no complexo da Penha. “A gente sabe que a Covid foi muito difícil e muito dura pro município do Rio de Janeiro, foi difícil para quem mora no Leblon, foi difícil para quem mora em Copacabana, mas estava muito mais difícil para quem mora na Maré, que é a classe trabalhadora e que mesmo em uma pandemia tinha que sair pra trabalhar.”

Então, quando o poder público prioriza a Maré é por se preocupar com quem mais precisa e que tem menos possibilidade de lidar com essa realidade. A imunização foi a saída para a pandemia e a cobertura vacinal foi fundamental também diante das variantes.

Ele relembra o que Daniel Soranz, secretário municipal de saúde, disse para ele quando o colocou no cargo dizendo que a resposta da comunidade viria da própria comunidade: “você sabe o que é precisar e não ter, sabe a falta que fará aquilo”

“Isso tem me motivado muito até hoje, porque na ausência de atendimento o morador não vai tirar um gás de uma mistura para repor essa necessidade. As unidades de saúde têm se esforçado para entregar um SUS melhor, um espaço de cidadania em que vai além de só cuidar de pessoas doentes, mas que pode ser uma referência de qualidade como foi no Vacina Maré.”

Thiago Wendel, coordenador Geral da AP3.1. Foto: Ramon Vellasco / Observatório de Favelas

A “ADPF das favelas” também foi importante no processo de vacinação em massa na Maré, mas ainda assim vem perdendo força. Como diz Camila Barros, pesquisadora do Boletim de Segurança Pública na Maré.

“Apesar da redução dos impactos após decisão do STF, é importante pontuar que a ADPF vem perdendo força ao longo do tempo. Os impactos da violência voltaram a subir nos anos seguintes e em 2022 o número de mortes em operações policiais na Maré é o maior dos últimos três anos. Dado que nos alerta para o fato que a política de segurança pública segue em constante disputa.”

Foto: Patrick Marinho

Assim, como a pandemia tornou-se um pesadelo coletivo de perdas constantes, as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro são como pandemias de uma letalidade de um sistema falido que mata gente e não soluciona a questão da segurança pública. Essa é uma ferida que, para moradores, nunca se fecha, assim como para profissionais da saúde que convivem constantemente com essa política de uma violência sistêmica.

O desejo que permanece é de que o legado do “Vacina Maré” possa estar presente além da imunização da população, das blusas e ecobags distribuídas que agora fazem parte da paisagem da Maré com os moradores nas unidades da saúde, nas feiras e nos mais variados ambientes. O que precisa permanecer para o Estado é que a política de preservar e salvar vidas deve vir em primeiro lugar, e de que a saúde mental de moradores não pode ser considerada como mero efeito colateral.

Para que assim de fato o direito à vida e à saúde sejam garantidos como tantos outros direitos que não são estabelecidos e até sabotados pelo próprio Estado.

 

*Ana Paula Godoi é moradora da Maré, formada em Publicidade e Propaganda e Analista de Comunicação do Panóptico. Ana Paula foi selecionada através do “Como se Proteger do Coronavírus – Programa de Reportagem”.

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