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A reutilização de pneus como resposta periférica à emergência da dengue em Belém do Pará

O Coletivo “CreArte que Transforma” lidera iniciativas sustentáveis e educacionais contra a poluição e a proliferação do Aedes Aegypti no território.

Por Calebe Serra*

Em 2010, o então borracheiro Orlando Serra viu nos pneus com os quais trabalha uma oportunidade inovadora de assumir um compromisso socioambiental por meio da reutilização dessa matéria-prima. Com cortes e remates (estes, manuais, pois não se pode manusear os pneus com ferramentas devido à fuligem cancerígena do resíduo), se pôs a acionar a ancestralidade: explorar como se pode (re)fazer materiais que já não correspondem a seus usos originais, transformando-os em vasos, floreiras, esculturas, dentre outros. 

Orlando Serra, de 62 anos, em seu ateliê. Foto: Ivan Duarte/O Liberal.

Inicialmente, Orlando se dedicava a produzir as peças sob encomenda ou para venda a pronta entrega em seu ateliê — antes, borracharia. Com o tempo, ganhou reconhecimento local em matérias que cobriram sua atuação nos principais veículos de comunicação de Belém do Pará e, hoje, é chamado para ministrar palestras e oficinas, em parcerias públicas e privadas, e participar de feiras nacionais e internacionais de artesanato. 

Em 2021, por exemplo, foi premiado no Edital Multilinguagens da Lei Aldir Blanc n.º 14.017/2020, da Secretaria de Estado de Cultura do Pará (SECULT/PA), que possibilitou a realização de palestras e oficinas ofertadas a escolas públicas e comunidades marginalizadas das periferias da Grande Belém, nos bairros do Curió-Utinga, do Guamá e da Terra Firme, e na Ilha de Mosqueiro. No mesmo ano, promoveu também palestras e oficinas junto a Prefeitura Municipal de Belém, via Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova (UCP/PROMABEN). 

Orlando durante as ações em parceria com a UCO/PROMABEN. Foto: Arquivo pessoal.

Depois de alguns nomes, o coletivo se fixou em “CreArte que Transforma”, sendo encabeçado por Orlando e composto por sua família, incluindo sua esposa, Rute Ferreira, e seu filho Calebe Serra. Sua missão principal é promover a sustentabilidade, através da reutilização de pneus e a democratização da educação ambiental, com destaque ao combate contra a poluição e a proliferação do carapanã, termo regional para os mosquitos na Região Norte, como o Aedes Aegypti — vetor da dengue, zika, chikungunya e outras enfermidades. Além disso, o artesão expressa em suas obras marcas da fauna e flora amazônidas, assegurando a valorização da história e da cultura da região. 

As ações do coletivo são pontuais, voltadas às comunidades marginalizadas de Belém. Antes das atividades, realiza-se a coleta e higienização dos pneus, retirados de ruas, calçadas e esquinas da capital paraense. Depois, planeja-se o que será feito, do conteúdo das palestras aos materiais a serem ensinados e produzidos nas oficinas (peças de jardim, de decoração, dentre outras), que depois são doados às comunidades beneficiadas pelo Coletivo. Como aponta Raimundo Ezio Prestes, presidente da associação comunitária SOS Curió-Utinga: 

“Quando se trata da reutilização, iremos observar vários pontos positivos, como gerar emprego e renda, e se tratando de dengue, a reutilização ajuda a salvar muitas vidas”, diz Raimundo. “Creio que o poder público tem que avançar em uma política de reutilização de pneus em nosso país, valorizando esses profissionais que não só reutilizam pneus, mas transformam em arte, e ajudam a proteger a população para que os mosquitos da dengue não se proliferem e venham ceifar a vida alheia. É preciso reconhecer e valorizar essas pessoas que são chamadas de ‘catadores de lixo’, porém estão contribuindo para que vidas sejam salvas.” 

Peças do artesão em exposição na Praça do Canto do Utinga. Foto: Arquivo pessoal.

O Brasil tem assistido em silêncio o aumento no números de casos de dengue nos últimos anos, especialmente este ano. Até a 13º (décima terceira) semana de 2024, a marca de 1.000 óbitos pela doença foi ultrapassada, o que contrasta com os 1.094 registrados durante todo o ano de 2023, como aponta o Painel de Arboviroses do Ministério da Saúde

A proliferação do carapanã da dengue tem algumas especificidades: é viável em ambientes suscetíveis ao acúmulo de água, negligenciados ou com pouca manutenção, onde comumente se encontram materiais inadequadamente descartados, como os pneus. Sobre isso, Orlando comenta: “Infelizmente, já passou a ser uma cultura, ainda que errada, a cultura de dar o direcionamento incorreto desses pneus”. 

Quem reside na capital paraense ou já a visitou sabe que localidades com descrições semelhantes a essas não são incomuns, o que torna as ações de combate à enfermidade mais difíceis, principalmente as que partem da população da cidade. 

Quando se pensa no combate ao Aedes Aegypti e a educação socioambiental, a reutilização de pneus não é a primeira resposta que vem à mente, mas é entendida como inovadora pois, apesar de ser prática ancestral, caiu em desuso nos dias em que se respira o consumismo. Não se pode apontar quantos mosquitos deixam de botar suas larvas a cada pneu reutilizado, por exemplo, e, por isso, os resultados não podem ser mensurados ou vistos em números ou porcentagens.

Pneus no ateliê após o recolhimento. Foto: Arquivo pessoal.

“Às vezes, a gente fica se perguntando: quantos pneus de carro-de-mão, de bicicleta, de carros de passeio, de carreta, de caminhão, de trator, quantos nós já tiramos do meio ambiente?”, questiona o artesão. 

O que se sabe é que impactos sociais têm sido alcançados. Hoje, o ateliê de Orlando se tornou uma espécie de ecoponto, em que as pessoas deixam pneus pois sabem que serão aproveitados. Ainda, o reconhecimento de ações socioambientais como esta persiste há mais de dez anos nos jornais, impressos e televisivos, e no boca-a-boca da cidade, o que reforça a relevância do que é proposto pelo artesão. Como conta a antropóloga e professora emérita da Universidade Federal do Pará, Jane Felipe Beltrão: 

 

“Pensar sobre as soluções sustentáveis encontradas pelas pessoas que moram em áreas vulnerabilizadas das grandes metrópoles no Brasil, como no caso de Belém-Pará, é um desafio. Para tomar a criatividade presente entre os/as ‘artesãos/as da vida cotidiana’ implica em pensar a nossa ancestralidade. Lembro que quando não tínhamos uma profusão de utensílios, grande parte das pessoas adaptavam recipientes diversos, caixas, frascos, vidros, pneus e muitos outros objetos. Juntava-se a necessidade e criatividade. Do que digo, tiro uma lição, olhando o passado, construiremos um futuro sustentável, podemos cantar um mundo sustentável pelas mãos da sabedoria ancestral”, relata. 

Orlando, 62, e Rute, 55, durante as ações para Edital Multilinguagens da Lei Aldir Blanc (SECULT/PA). Foto: Arquivo pessoal.

Sobre a catástrofe socioambiental, Rute, esposa de Orlando, afirma: “Hoje, as árvores são de concreto, os rios, de asfalto, e a Terra sangra sob a mão humana”, logo, a reutilização de resíduos sólidos é uma resposta periférica e ancestral aos descasos governamentais. Quando o pneu é retirado da natureza, são evitados 600 anos (período estimado de decomposição dos pneus) de proliferação do carapanã, bem como a obstrução de saídas de esgoto e vias públicas, e os alagamentos. Orlando é um agente periférico e, por isso, atua com, para e pela periferia. 

Por tomar forma nas periferias, o projeto abarca variados recortes sociais. Sabe-se que, sobretudo em Belém do Pará, na Amazônia, a maioria das pessoas que estão marginalizadas pertence a grupos étnico-raciais diversos (negras/os, entre pretas/os e pardas/os, indígenas e quilombolas), rotulados como “pobres”, por terem sido privados de acessos econômicos, e do gênero feminino. Além disso, é indispensável salientar que trata-se aqui de um projeto fora do eixo sul-sudeste do Brasil, que é historicamente favorecido e privilegiado em detrimento dos demais, mesmo quando os debates estão fora dele, como é o caso. CreArte que Transforma é protagonismo amazônida. 

Raimundo garante que a comunidade agradece: “A associação SOS Curió-Utinga, vem em nome da comunidade, agradecer ao Sr. Orlando Serra, pelos relevantes serviços prestados à população de nossa cidade, usando seu talento para reutilizar pneus em verdadeira obra de arte, e deixando uma mensagem que juntos podemos fazer a diferença e preservar o meio ambiente para as futuras gerações”. 

_________________________

* Calebe Serra é graduando em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e reside em Belém. Comunica o que pesquisa em eventos acadêmicos nacionais e internacionais e atua em prol do Projeto de Ensino Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER). Calebe foi selecionado através do edital Brota no Notícias.

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