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Saberes ancestrais e resistência indígena nos contextos urbanos

Na cidade do Rio de Janeiro, as vozes indígenas se fortalecem ao discutir seus conhecimentos e participar ativamente da luta social, evidenciando sua integração na sociedade.

Por Isabella Rodrigues

No antigo edifício do Museu do Índio, a Aldeia Maracanã (Teko Haw Maraká’nà) emerge como um importante centro de resistência cultural indígena na cidade do Rio de Janeiro e no país. Desde 2006, indígenas de diversas etnias têm ocupado esse espaço, resistindo às tentativas de despejo e lutando pela sua permanência. Na busca pelo reconhecimento da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakana, integrantes da comunidade promovem seus conhecimentos e lutam pela preservação de seu território sagrado e suas práticas culturais.

Potyra Guajajara, liderança local, se destaca como uma guardiã dos saberes e práticas tradicionais de cura e bem-estar. Em suas palavras, Potyra expressa a essência da medicina indígena, que vai além da cura física, abrangendo o equilíbrio espiritual e emocional. Ela destaca a presença de pagés, parteiras e benzedeiras na aldeia, ressaltando a importância desses conhecimentos ancestrais para a saúde e o fortalecimento dos povos indígenas e de pessoas de fora que procuram auxílio para doenças e aflições.

Potyra Guajajara durante sua oficina de plantas ancestrais, parte da programação da Universidade para o evento Abril Indígena deste ano. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas.

“Somos a terra, somos as águas, somos a floresta, somos o rio. Por isso brigamos. Não é só pela terra em si, mas pelo que vem da terra”, diz Potyra durante sua oficina de plantas ancestrais, parte da programação da Universidade para o evento Abril Indígena deste ano. “Toda a nossa medicina, toda a nossa cura vem daqui”, completa.

Descolonizar o saber

Potyra também destaca a importância da educação e do reconhecimento dos saberes tradicionais, tanto para as gerações presentes quanto para as futuras, enfatizando que a luta pela defesa da terra e da cultura indígena não é apenas uma responsabilidade dos povos indígenas, mas de toda a sociedade brasileira.

A Aldeia Maracanã (Teko Haw Maraká’nà) emerge como um importante centro de resistência cultural indígena na cidade do Rio de Janeiro. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas.

Em uma carta aberta, a Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakana alegou a falta de comunicação aos indígenas da Aldeia Maracanã sobre a audiência da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI) e tampouco sobre a reunião realizada em agosto de 2023 no Ministério da Educação (MEC) em Brasília, quando a pauta de uma Universidade Indígena foi discutida.

De acordo com o documento “É sabida e documentada a participação da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakana nesse processo de educação decolonial, com ampla inserção de demandas pluriétnicas e de ações afirmativas não apenas no território […], mas nos territórios para onde os indígenas levam suas artes, suas histórias, seus saberes ancestrais e possibilitam para que a  Lei 11.645/2008 esteja viva e se faça cumprir.” A lei em questão torna obrigatório o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas brasileiras.

A Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakana alegou a falta de comunicação sobre a audiência da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI). Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas.

Em abril, o Ministério da Educação (MEC) estabeleceu um grupo de trabalho para avaliar a viabilidade da criação da “Universidade Indígena”. Esta equipe terá a tarefa de conduzir estudos técnicos para subsidiar a implementação da instituição, com a apresentação de um relatório dentro de 180 dias. 

Durante o Acampamento Terra Livre, que em 2024 completa 20 anos, representantes da Aldeia Maracanã participaram de diálogos com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), juntamente com líderes de diversas etnias e aldeias, para discutir as metas de implementação da referida universidade.

Além da luta pela resistência da Aldeia Maracanã, Potyra levanta questões mais amplas sobre a preservação ambiental e a soberania dos povos indígenas. Ela alerta para a ameaça representada pelos interesses de países mais ricos, que buscam explorar os recursos naturais do Brasil, incluindo sua água e sua biodiversidade.

Potyra segura camiseta com logo do evento Abril Indígena 2024 realizado na Aldeia Maracanã. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas.

“Estamos na luta. Não é um dia de comemoração, é um dia de luta. Desde 1500, estamos nessa luta pela nossa cultura, que é diversa, não reconhecida, apagada no Brasil. Todas essas lutas foram apagadas. Então, esse dia, 19 de abril, é um dia para discutirmos isso”, finaliza.

Demarcação de Telas

A Maré, caracterizada por sua diversidade, abriga a maior concentração da população indígena do município do Rio de Janeiro, representando 12,5% da população indígena total registrada no município pelo Censo do IBGE de 2010. É neste contexto que acontece a programação Abya Yala, realizada pelo Galpão Bela Maré, espaço cultural do Observatório de Favelas. 

“Compreender quem são essas pessoas, quais são suas narrativas, é de extrema importância”, afirma Ana V. Lopes, curadora da programação e originária do povo Guarani Mby’a. “É fundamental para que coletivamente a gente entenda que a aldeia é também a favela, é também o quilombo, é também a cidade. A aldeia não é um cemitério, um colonizador. A aldeia é tudo aquilo que a gente retoma, a gente constrói um pensamento indígena de excelência ali”.

Inaugurada como parte da agenda do CineBela em 2022, a Programação Abya Yala tem como objetivo central apresentar sessões de cinema com obras audiovisuais produzidas por cineastas indígenas. A expressão “Abya Yala”, oriunda da língua do povo Kuna da Colômbia e do Panamá, simboliza a ideia de terra viva ou terra em florescimento.

Ana V. Lopes, curadora da programação Abya Yala e originária do povo Guarani Mby’a. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas.

A curadora destaca que a proposta da programação está alinhada ao conceito de Demarcação de Telas, cunhado por Ailton Krenak, líder indígena e escritor. Esta abordagem busca afirmar a apropriação de espaços no cinema nacional e convida a ter um olhar contra-colonial para as narrativas indígenas, tanto em contextos aldeados quanto urbanos e favelados. 

Para Ana trata-se de ver o cinema não apenas como “uma perspectiva antropológica de estudo da vivência originária, mas como um lugar de criação, de fomento artístico, de pesquisa, de inovação, de problemáticas levantadas pelos próprios povos indígenas apresentados por meio do audiovisual”.

As sessões acontecem de forma gratuita em espaços públicos da Maré entre os meses de fevereiro e novembro deste ano. Cada sessão é seguida por debates entre dois convidados, que podem ser indígenas ou atuantes em diferentes segmentos do audiovisual. É criar um espaço para dimensionar cada vez mais o que é um ato contracolonial”, enfatiza Ana. “Conversar sobre isso [é importante] para ampliar esse debate do que é uma pessoa indígena, não limitando essa identidade ao passado colonial. É construir ela no presente, no agora, nesse ambiente de sociedade, inserida em vários diversos campos”, acrescenta.

As sessões acontecem de forma gratuita em espaços públicos da Maré entre os meses de fevereiro e novembro deste ano. Foto: Thaís Valencio / Observatório de Favelas.

A curadoria, conduzida por Ana e pela atriz Lian Gaia, priorizou a diversidade de públicos ao desenvolver as dez sessões da programação, divididas em cinco para o público infanto-juvenil e outras cinco para o público diverso. 

As sessões infantis visam oferecer uma experiência enriquecedora, com narrativas de fácil assimilação que estimulam a imaginação e abordam temas como identidade indígena e preservação do meio ambiente. Já as sessões para o público diverso incluem documentários, dramas e romances, com uma abordagem acadêmica para contemplar diversas perspectivas e temas relevantes.

Lopes ressalta o potencial da programação Abya Yala para despertar um movimento de contra-colonização e retomada de saberes ancestrais. A curadora refere-se ao conceito de “coma colonial”, explorado por Gustavo Caboco, que descreve um estado em que as pessoas são induzidas a não criticar criticamente a história da colonização. 

Para Ana, é crucial um despertar coletivo, impulsionado pelo amor e pela fúria, para que todos possam compreender como se movimentar juntos no processo de retomada. A ideia é que, ao discutir o aldeamento urbano, as pessoas possam se identificar e encontrar conexões com suas próprias origens indígenas, seja através de sobrenomes, ensinamentos familiares ou percepções sociais.

Crianças durante sessão do Cine Bela Abya Yala na Praça do Parque União, Maré. Foto: Ramon Vellasco / Observatório de Favelas.

Dados do Censo de 2022 do IBGE revelaram um aumento de 88,8% na população indígena em relação ao último censo de 2010. Atualmente, os indígenas representam 0,83% da população total do Brasil, equivalente a mais de 1,69 milhão de pessoas. Ana destaca a importância do aumento da população indígena nos últimos anos como uma resposta à colonialidade e ao apagamento histórico, enfatizando a necessidade de políticas públicas e narrativas que reconheçam e valorizem as identidades indígenas, tanto nas aldeias quanto nas cidades.

A curadora ressalta que o processo de retomada, utilizado para o reconhecimento étnico, não tem retrocesso e aponta para os novos desafios que surgem na luta por um ensino anti-racista e anti-etnocida, buscando que pessoas não indígenas se tornem aliadas nessa luta coletiva pela construção de ambientes seguros.

O audiovisual, ao promover um ambiente para a expressão e o diálogo das diversas cosmovisões indígenas, amplia suas vozes, destacando a diversidade e a riqueza dos povos originários. Tanto a Aldeia Maracanã quanto a Maré se consolidam como territórios de resistência, preservando saberes ancestrais e desafiando estereótipos históricos. Nesse cenário, a descolonização não se limita à retomada de territórios, mas reconhece e valoriza as culturas indígenas como pilares da identidade nacional.

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