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Ascensão do futebol feminino nas favelas e periferias brasileiras

Projetos que promovem aulas de futebol para meninas nas favelas e periferias dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais mostram como a prática do esporte quebra estereótipos de gênero e geram transformação social.

Por Isabella Rodrigues

Com décadas de luta, a história do futebol feminino mostra uma trajetória de superação e persistência das mulheres para conquistar espaço no esporte. No Brasil, o primeiro registro de uma partida de futebol feminino remonta à década de 1920, quando equipes femininas começaram a surgir, principalmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

A persistência de jogadoras em diferentes regiões do país fez com que o futebol feminino ganhasse força e visibilidade, com a organização de torneios e disputas locais. Contudo, essas iniciativas encontraram resistência das autoridades e sofreram diversos entraves legais e culturais, sobretudo no Estado Novo, quando em 14 de abril de 1941, o presidente Getúlio Vargas baixou o decreto 3.199, que proibia as mulheres de praticar esportes que não fossem “adequados a sua natureza”. Com isso, mulheres passaram mais de 40 anos impedidas de jogar.

Atualmente, parece que o jogo virou. Segundo Ana Moser, ministra do Esporte, desenvolver o futebol feminino é prioridade no governo. Em março, o Governo Federal lançou a Estratégia Nacional para o Futebol Feminino, que por meio do Ministério do Esporte objetiva criar as condições para a descoberta de novos talentos e os investimentos necessários no setor.

Na busca pela inclusão e desenvolvimento do futebol feminino nas favelas e periferias brasileiras, diversas iniciativas têm surgido. Projetos sociais e ONGs promovem a prática esportiva, oferecendo condições para que as meninas sejam inseridas no universo do futebol, auxiliando na formação não apenas de atletas, mas também de cidadãs.

Visibilidade em alta e desafios a enfrentar

A primeira edição oficial da Copa do Mundo Feminina reconhecida e realizada pela FIFA aconteceu em 1991, na China. O pioneirismo de atletas como Marta, considerada a melhor jogadora do mundo por seis vezes, Sissi e Pretinha que se destacaram internacionalmente, fortaleceu a imagem do país como lugar de grandes talentos no futebol feminino.

Mas, apesar das conquistas e avanços, o futebol feminino ainda enfrenta desafios no Brasil, como a falta de investimentos, estrutura e reconhecimento. As disparidades salariais entre o futebol feminino e masculino e premiações são evidentes, refletindo a desigualdade de gênero no esporte.

A Copa do Mundo Feminina desempenha um papel fundamental na valorização do futebol feminino, representando um marco na luta pela equidade de gênero no esporte. Neste ano, a competição acontece na Nova Zelândia, Austrália, sendo a primeira a contar com 32 seleções e a adotar formato igual ao torneio de futebol masculino. No jogo de estreia da seleção brasileira contra o Panamá, o Brasil venceu por 4 x 0, sendo 3 gols da maranhense Ary Borges, que conquistou a torcida brasileira e se destacou ao se tornar a quarta atleta brasileira a marcar três gols em uma mesma partida em Copas.

Hoje, além da Copa, temos o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, o Brasileirão Feminino, disputado desde 2013 e a Supercopa de Futebol Feminino, que teve a primeira edição em 2022. O ganho de espaço na mídia também contribui para a igualdade de gênero no futebol e para a representatividade, inspirando milhares de meninas que vislumbram a possibilidade de se tornarem jogadoras profissionais.

Menina sabe jogar bola sim!

“A Copa do Mundo veio no momento bom em que o futebol feminino está com bastante visibilidade e valorização. Essas meninas vão querer ser uma Marta, uma Bia Zaneratto, uma Debinha, uma Cristiane…’, celebra Patricia Alves, a Patty, professora de futebol e futsal na UNAS Heliópolis. Segundo Patty, as meninas que participam do projeto estão entusiasmadas em relação aos jogos da Copa, revelando interesse e empolgação que antes eram vistos somente no futebol masculino.

Em Heliópolis, maior favela de São Paulo, a UNAS – União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região busca suprir a ausência de espaços esportivos e insuficiência de políticas públicas esportivas e culturais através da democratização do acesso a esportes de qualidade para moradores de Heliópolis de forma gratuita há mais de 10 anos. Entre os projetos estão o Futebol Heliópolis, que atende adolescentes com idade entre 14 anos à 18 anos e o Futsal Heliópolis que promove atividades para crianças a partir dos 6 anos. Hoje, os projetos atendem cerca de 50 meninas separadas em turmas de acordo com a idade.

Em São Paulo, a UNAS realizam projetos de futebol e futsal para crianças e adolescentes na favela de Heliópolis. Foto: Acervo pessoal.

“Tem muito preconceito ainda, mas a gente está caminhando para tirar esse estereótipo de que futebol é para homem, que menina não sabe jogar bola. Menina sabe jogar bola sim, e muito bem”, afirma Patty, 37 anos, que é professora de educação física, nascida e criada na favela de Heliópolis, e atua com futebol na UNAS há 6 anos e na Associação Desportiva São Caetano.

A professora conta que a rotina de treinos acontece duas vezes por semana na quadra do projeto e que vê melhoras tanto nas habilidades motoras e capacidades físicas das meninas quanto no desenvolvimento psicológico, pois além de praticar esportes as jovens encontram um espaço acolhedor de escuta onde podem pedir e receber conselhos.

O incentivo a profissionalização no esporte soma-se a preocupação com a escolaridade das jovens, pois Patty busca ressaltar que nem todas vão se tornar jogadoras, então para além do ensino do esporte, há um ensino de valores a fim de mostrar seus direitos e deveres, além ressaltar que caso a profissionalização no futebol não aconteça, as meninas tem outras possibilidades de sucesso profissional.

 

Sophia Maia junto de outras meninas que participam do projeto de futsal. Foto: Acervo pessoal.

Entre as participantes está Sophia Maia, 13 anos, jogadora de futebol há mais de 4 anos. Sophia chegou na UNAS através de Patty que a viu jogando futebol junto aos meninos em um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) onde dava aulas, e percebendo seu talento, a convidou para participar do projeto de futsal. Em campo ao lado de outras meninas, Sophia ganhou o segundo lugar no Circuito Esportivo da Cidade de São Paulo, competição de futsal voltada para crianças e adolescentes não federados e ainda este ano participará da Taça das Favelas, o maior campeonato de futebol entre favelas do mundo.

Jogue como uma garota

“O esporte, especialmente o futebol, desempenha um papel crucial no empoderamento de meninas e jovens mulheres em condições socioeconômicas desfavoráveis, oferecendo a elas oportunidades de desenvolvimento pessoal, autoconfiança e liderança”, afirma Cintia Miranda, coordenadora de projetos do INEEC – Instituto Nacional De Esporte, Educação E Cultura.

Incentivar a prática esportiva, contribuir para a redução da ociosidade e situações de risco e vulnerabilidade social de crianças e adolescentes estão entre os objetivos do projeto “Jogue Como Uma Garota”, iniciativa do INEEC, com apoio do Ministério do Esporte, que está indo para o seu terceiro ano e que tem como público alvo meninas de 6 a 18 anos de idade. Ao longo de dois anos de execução, o projeto beneficiou mais de 750 alunas, distribuídas nas regiões periféricas de Belo Horizonte, Varginha e Grão Mogol, em Minas Gerais. No primeiro ano do projeto, Taynara Silva, uma das alunas de Belo Horizonte, foi aprovada em uma seletiva de futebol feminino do Clube Atlético Mineiro.

“Jogue Como Uma Garota”, iniciativa do INEEC, beneficiou mais de 750 alunas em Minas Gerais. Foto: Acervo INEEC

A proposta traz um caráter de inclusão, promoção e valorização, uma vez que acontece de forma gratuita e fornece material esportivo, uniforme e uma equipe multiprofissional especializada. “Oferecer o projeto de forma totalmente gratuita nestes locais de vulnerabilidade abre portas para que o futebol entre na rotina ociosa das meninas, que por vezes não encontram programas esportivos voltados para si, transformando o antiquado conceito de futebol, antes associado ao masculino e abrindo espaço para que as meninas também possam vivenciar esta modalidade com mais naturalidade”, completa Cintia.

Ainda, o trabalho multiprofissional entre profissionais de educação física e assistência social propicia que várias famílias sejam cadastradas em programas assistenciais, sejam encaminhadas para redes de apoio e até mesmo o primeiro emprego. Contudo, entre os desafios relatados pelos profissionais está a dificuldade das alunas em ter disponibilidade para as aulas, tendo em vista sua condição e o ambiente em que estão inseridas, pois “muitas assumem desde novas a responsabilidade de cuidar de um lar, dos irmãos mais novos ou até mesmo trabalhar para auxiliar nas despesas. O quadro se agrava ainda mais quando existe a gravidez na adolescência”.

“Participar do projeto permite que elas superem estereótipos de gênero, promovam a inclusão social e a igualdade. Além disso, a prática esportiva estimula a saúde física e mental, contribuindo para uma melhor qualidade de vida e proporcionando uma plataforma para que essas jovens expressem sua voz e alcancem suas aspirações”, finaliza a coordenadora.

A iniciativa acontece de forma gratuita e fornece material esportivo, uniforme e uma equipe multiprofissional especializada. Foto: Acervo INEEC.

Deixa a menina jogar

Na Zona Norte do Rio de Janeiro, Estrelas do Mandela brilham nas quadras do Complexo de Manguinhos. O projeto começou em 2004, inicialmente como um time de mulheres e desde 2015 realiza treinamentos com crianças. Atualmente, a iniciativa atende 60 crianças e adolescentes entre 5 e 18 anos de idade, sendo 57 meninas e 3 meninos. As ações combinam o futebol com práticas socioeducativas, entre as ações estão treinamento esportivo, apoio escolar, oficina de leitura, oficina de grafite, passeios, jogos coletivos e ainda reuniões de responsáveis.

O Complexo de Manguinhos tem mais de 10 favelas e população em torno de 40 mil habitantes. Hoje, o Estrelas do Mandela conta com crianças distribuídas em 8 destas favelas e na favela do Jacarezinho. “A gente rompe essa fronteira para além do esporte, para levar a educação, a cultura, o esporte, o lazer e o enfrentamento a várias situações, principalmente a questão da vulnerabilidade social dessas meninas, e também promovendo o empoderamento feminino através do esporte”, diz Graciara Silva, professora de educação física e coordenadora do projeto.

No Complexo de Manguinhos, há 20 anos o Estrelas do Mandela busca unir o futebol ao empoderamento feminino. Foto: Acervo Estrelas do Mandela.

Graciara, mais conhecida como Gagui, chegou no projeto ainda adolescente, como aluna e após sua formação profissional retornou com uma ideia de negócio social e empreendimento criativo. Ao lado de outras 4 mulheres de Manguinhos busca proporcionar através do futebol melhora da saúde e da qualidade de vida, além de driblar questões que podem comprometer a vida das meninas que moram na região como a maternidade precoce e a evasão escolar.

“É natural do homem se perceber e se valorizar em vários espaços e, com a chegada da mulher no futebol feminino, esse protagonismo é invertido. Então [é preciso] reconhecer não só a participação das mulheres no futebol, mas também a nossa capacidade, porque éramos vistas como as mais frágeis, o sexo frágil, o sexo que precisa de mais proteção. É sobre questão de capacidade mesmo, as mulheres podem estar não só no futebol, mas elas podem estar em qualquer lugar, e é isso que a gente trabalha também”, pontua Gagui.

Campanha “Deixa A Menina Jogar” vai promover uma super transmissão dos jogos do Brasil. Imagem: Divulgação.

O projeto atua em três categorias: “fraldinha”, “pré-mirim”e “mirim”. Gagui relata assistir o desenvolvimento técnico das alunas através do trabalho de conscientização corporal realizado em campo. “A gente tem meninas aqui que já passaram da categoria ‘mirim’ e hoje já estão iniciando a Taça das Favelas, participando de competições mais desafiadoras”.

No contexto da Copa do Mundo Feminina 2023, o Estrelas do Mandela lançou a campanha de doação “Deixa A Menina Jogar” a fim de promover para as meninas participantes uma super transmissão dos jogos do Brasil e atividades artísticas na sede da instituição. A ação busca reafirmar a importância e reconhecer o potencial das mulheres no futebol, além da influência para milhares de meninas das favelas do Brasil.

Para meninas de favelas e periferias, o futebol vai além do lazer e competição. Ele se torna um meio de transformação social, uma oportunidade de desenvolver o senso de coletividade, disciplina, autoestima e respeito. Ao ingressarem no esporte, elas quebram paradigmas, superam estereótipos e ganham espaço para mostrar seu talento.

Nesse cenário, é fundamental que se invista em infraestrutura e em políticas públicas que possibilitem às meninas de territórios periféricos o acesso ao esporte e promovam um ambiente propício para que elas desenvolvam seu potencial. Investidores, patrocinadores e clubes devem olhar para as comunidades e fomentar projetos que promovam a prática esportiva e o desenvolvimento das meninas, garantindo que elas tenham perspectivas reais de profissionalização no futuro.

Mais do que um esporte, o futebol é uma ferramenta poderosa de transformação social, demonstrando que, independentemente do local de origem, meninas são capazes de conquistar seus sonhos e viver com dignidade. O futebol feminino emerge como uma força poderosa de inclusão, mostrando que o talento e a paixão pela bola não tem gênero nem barreiras socioeconômicas.

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