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Desertos Alimentares em xeque: Iniciativas que combatem a falta de acesso aos alimentos saudáveis em regiões periféricas de São Paulo

Onde a distância era obstáculo, pessoas de regiões periféricas decidiram criar verdadeiros oásis em combate aos desertos alimentares

Por Rosiana Alda*

Vista de dentro da horta Cultivada pelas Mulheres do GAU – Foto: Rosiana Alda

Ao ler a palavra “deserto” o que vem primeiro em sua mente? Uma região quente? Com muita areia? O deserto do Saara como referência? 

No dicionário define-se como deserto a  “região que se caracteriza pela pouca precipitação, amplitude térmica elevada e pouca vegetação”. No entanto, existem outros desertos que, talvez, passam despercebidos porque não têm exatamente essas características, mas que refletem os abismos da desigualdade social: são os desertos alimentares. Neles, a falta é de alimentos in natura, orgânicos e/ou minimamente processados. 

Os desertos alimentares não são regiões naturais, são regiões onde as políticas públicas não chegam ou não são efetivas. Onde o agir da população tem sido uma das poucas soluções para um jogo mais difícil que o xadrez. Os oponentes são bem claros: quem tem fome e quem impede o alimento saudável de chegar. Nesse jogo, só se ganha quando a distância entre quem produz a comida de verdade e a população é encurtada. Não existe outro xeque-mate porque a fome não espera. 

Teoria versus as dificuldades de acesso aos alimentos orgânicos na prática 

A Lei n° 10.831/2003 é bem clara sobre os benefícios da alimentação saudável: ” § 1o A finalidade de um sistema de produção orgânico é: I – a oferta de produtos saudáveis isentos de contaminantes intencionais”, e ainda defende que os alimentos orgânicos são importantes para a preservação da biodiversidade. 

A teoria também ganha reforço pela Constituição Federal quando indica em seu Art. 7 que é necessário ter recursos financeiros adequados capazes de promover diversos aspectos importantes da vida humana. “IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.

Por mais que a teoria seja o mundo efetivamente ideal, na prática, promover o acesso aos alimentos saudáveis tem sido um grande desafio, onde o salário mínimo de R$1.212 não supre todas as necessidades do povo brasileiro, atualmente.

Recentemente, houve a atualização do  Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19. Nele, 14 milhões de pessoas entraram em uma lista indesejada: a da fome. Em 2019, mais de 19 milhões de pessoas não tinham o que comer no Brasil. Agora, os dados indicam que são  33,1 milhões. Se considerar qualquer grau de insegurança alimentar (quando falta alimento em um ou mais dias do mês), 58,7% da população brasileira é afetada. E não é aquela fome que vem e pede-se uma comida por um aplicativo. É a fome que dói, que atinge a dignidade da pessoa e que, por vezes, a solução é dormir para ver se passa. 

A discussão sobre os desertos alimentares também traz à tona um panorama sobre o perfil da população mais afetada pela insegurança alimentar. 

Como surgiu a definição de Deserto Alimentar 

Pelo que consta no documento da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, a CAISAN, o termo “deserto alimentar” surgiu na 1995 e foi utilizado por um grupo especializado em nutrição do governo escocês. Depois disso, diversos outros estudos buscaram entender a relação entre a falta de acesso aos alimentos saudáveis com a obesidade, desnutrição, entre outros problemas de saúde. Após 16 anos da origem do termo, o departamento de Agricultura dos Estados Unidos definiu, em 2011, que uma região é considerada um deserto alimentar quando houver uma concentração de 500 pessoas ou mais, que precisem percorrer mais de 1,6 km para encontrar alimentos saudáveis em regiões urbanas, e 16 km em regiões rurais.

Em 2013, a nutricionista Ana Clara da Fonseca Duran publicou a tese “Ambiente alimentar urbano em São Paulo, Brasil: avaliação, desigualdades e associação com consumo alimentar”, pela USP. Nela, Duran conclui que “os resultados desta pesquisa indicam que há desigualdades no acesso a alimentos saudáveis na capital paulista, com uma maior concentração de supermercados, mercados municipais, sacolões e feiras livres em áreas de médio e alto nível socioeconômico, além de sugerirem que pequenos mercados localizados em regiões mais pobres da cidade fornecem uma menor disponibilidade e variedade de frutas e hortaliças do que os estabelecimentos congêneres localizados nas áreas mais ricas de São Paulo”.

Mapa da cidade de São Paulo mostrando mais feiras orgânicas em regiões nobres da cidade que em bairros periféricos. Fonte: Mapa de Feiras Orgânicas (IDEC)

 

O atual Mapa de Feiras Orgânicas (IDEC) ilustra bem a conclusão da tese ao mostrar o cadastro de apenas 65 feiras orgânicas na cidade de São Paulo (que tem mais de 12 milhões de habitantes) e estão concentradas em regiões como Pinheiros, Higienópolis, entre outros bairros nobres, excluindo o fácil acesso de regiões mais periféricas como Sapopemba, São Matheus, Ermelino Matarazzo, São Miguel Paulista, etc.

 

Para cada obstáculo que tenta distanciar o consumo de alimentos orgânicos e saudáveis, uma solução criada pela própria população

O Guia Alimentar para a População Brasileira reforça que “a alimentação adequada e saudável é um direito humano básico que envolve a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo” e classifica os alimentos in natura ou minimamente processados como os mais adequados para um consumo diário e nutritivo. 

Em entrevista ao Notícias e Análises, a nutricionista vegana Milena Fernandes, pós-graduada em fitoterapia e com certificação internacional em psiquiatria nutricional, destaca que “quando consumimos alimentos orgânicos, além de evitar os males causados pelos aditivos químicos, estamos absorvendo esses nutrientes e garantindo benefícios para a nossa saúde. Portanto, vale a pena fazer a troca”. 

Questionada a respeito dos argumentos sobre os alimentos orgânicos serem mais caros, a profissional enfatiza: “Orgânicos são um pouco mais caros, porém o tratamento das doenças causadas pelos defensivos agrícolas nos custarão mais caro ainda, futuramente”. 

Seja no campo ou na periferia, inúmeros obstáculos tentam impedir a propagação da alimentação saudável. Em sua página na internet, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) ressalta que “o sistema alimentar brasileiro está orientado para a produção de commodities por meio de cadeias longas de abastecimento. Um sistema ancorado em lucro e produtividade, alto impacto ambiental e agravamento da desigualdade social em função da precarização das condições de vida”. 

Para esta reportagem, fomos a mais de 230 km de distância entre a capital paulista e o sítio A Boa Terra, que produz mais de 25 toneladas de vegetais orgânicos certificados por mês (a considerar maços, unidades e quilos), incentiva a Educação Ambiental para crianças, doa parte da produção e que mudou a vida de muita gente na região de Casa Branca e Itobi.

Também fomos em São Miguel Paulista, região periférica de São Paulo com quase 370 mil habitantes, para contar as histórias de pessoas que estão resgatando as ancestralidades, incentivando que os moradores consumam mais alimentos produzidos pelas hortas urbanas orgânicas, possibilitando o acesso a alimentação saudável das crianças, jovens, adultos e idosos em uma verdadeira rede de apoio sem grandes deslocamentos. Por fim, também vamos contar a história do Orgânico Solidário, projeto que leva cestas orgânicas gratuitas e emergenciais às pessoas em vulnerabilidade social e que, de um certo modo, conectou todas essas histórias. 

Do campo à mesa: como é o dia a dia de quem planta o alimento orgânico que combate os desertos alimentares 

Aos 68 anos, seu Sebastião Alcântara acorda às 4h para preparar o café e ter tempo para falar com Deus antes de percorrer cerca de 20 km de moto, saindo de Vargem Grande do Sul, para trabalhar, a partir das 6h30, na máquina e plantio dos orgânicos do sítio A Boa Terra. Ele é um dos 32 colaboradores do local e está nesta rotina desde 1991.

O sítio tornou-se um dos pioneiros da agricultura orgânica da região, tem uma área total de 100 hectares, sendo 12 hectares utilizados para a produção de quase 4 mil cestas mensais e quase 80 de área de preservação natural. 

Nascido e criado também em Vargem Grande do Sul, Tião da Boa Terra, como é conhecido na região, veio de uma família de agricultores que trabalhava em uma fazenda como colonos (quando o trabalhador também mora na fazenda). Devido ao pai dele ter ficado doente (desmaiava repentinamente), deixou de estudar aos 10 anos para assumir o lugar do patriarca da família. “Não pude estudar mais e peguei o caminho da roça”. Até o fim da adolescência, ele só teve contato com alimentos orgânicos. “A gente produzia tudo orgânico até os meus 19 anos. Fazia a terra, plantava e colhia aquela alimentação perfeita”. 

Em 1971, saiu do campo para a zona urbana de Vargem Grande porque a fazenda onde trabalhava e morava deixou de produzir feijão para investir na produção de café. “Ficamos aborrecidos e saímos de lá meu pai, minha mãe e mais seis irmãos”. 

Ao saírem do campo para a zona urbana, seu Tião passou a ter contato com a agricultura convencional. “Quando a gente veio para a cidade, eu conheci a parte da convencional, que é o adubo, esses venenos bravos. Eu ia plantar batata, eles jogavam um pozinho preto dentro do risco da batata”. 

Entre as memórias daquela época, ele conta sobre cenas difíceis de esquecer. “Naquele tempo não tinha trator, surcava com o burro para cobrir a batata. Quando era de tarde, quantos burros não morriam por causa do cheiro do veneno. Muita gente empipocava o rosto, passava mal, tinha dor de cabeça”.

Depois dessa experiência, seu Tião também foi cortador de cana por 5 anos até ser demitido, em 1990. “Nós fomos cortados para dar lugar aos outros”. Nessa época, ele já estava casado desde 1975 e a esposa trabalhava em uma fazenda que cultivava alho orgânico. Ela conseguiu uma vaga para o marido que, em pouco tempo, foi contratado e enviado com um grupo de trabalhadores rurais para o Sítio A Boa Terra em janeiro de 1991.

Do sustento vindo do campo, o casal teve dois filhos e três netos. Sobre a produção de orgânicos, enfatiza: “É uma alimentação rica, puríssima. Você pode entrar naquela estufa ali agora, você acha dois tomates maduros e come com gosto”. Também se orgulha em ter muita energia: “Eu tenho uma potência para correr, trabalhar como se tivesse 30 anos ainda. Estou muito feliz aqui, tenho uma saúde perfeita e gosto do serviço que eu faço”.

Sebastião e Júlio conversando – Foto: Rosiana Alda

 

Já o Júlio Cesar Benedito, de 42 anos, cresceu em Itobi, cidadezinha com pouco mais de 7 mil habitantes, a 5 minutos de carro até o sítio. Ele presenciou o que aconteceu com muitas famílias que nasceram no campo. “Meus pais vieram de um processo que comiam muita abóbora, batata doce, mandioca, porque era o que tinha. O sonho deles era comer iogurte, refrigerante, coisas que eles achavam um máximo e comiam poucas vezes por ano, mas sem saber que faziam a alimentação certa. Eles nos criaram em um movimento de dar para a gente o que não tiveram. Espero que a nova geração que está tendo filhos tenha essa consciência para mudar isso de novo”. 

Desde setembro de 1997, Júlio é o gerente geral do sítio e em quase 2 horas de conversa, ele mostrou boa parte da infraestrutura de onde atua há quase 25 anos. Entre Ipês, girassóis, plantação de orgânicos e passarinhos cantando o tempo todo, o sítio também leva educação ambiental às crianças de escolas municipais da região. Elas fazem parte dos projetos Jovens Jardineiros e Guardiões da Natureza, ambos criados pelo Centro Ecológico dentro do sítio desde 2003. A ideia é conscientizar sobre a importância do meio ambiente e da boa alimentação.“Fico bem feliz que as escolas estão trabalhando uma alimentação viva e que possa conectar os alunos a melhor alimentação porque começa a partir daí”. 

Entre os mitos e verdades que os produtores rurais enfrentam ao produzirem orgânicos

Apesar do preço ser uma grande barreira a quem não tem muitos recursos financeiros é possível criar alternativas que facilitem esse acesso e que tem tudo a ver com o combate aos desertos alimentares: reduzindo as distâncias entre quem produz e quem consome. 

Aos sábados, o sítio realiza uma feira orgânica com valores mais acessíveis. “As pessoas podem comprar legumes, verduras e frutas com preços praticamente de custo”, enfatiza Júlio. “Dá para melhorar esse preço. Dá para melhorar o volume. Vamos para São Paulo com 200 cestas. Se fossemos com mil, o custo de frete seria o mesmo. Só aí conseguiria diminuir bastante os custos”, reforça.  

Outro impasse quanto ao preço está relacionado às prioridades da classe média brasileira. Nesse sentido, Júlio questiona: “A questão financeira é séria, mas ela poderia ser trabalhada de outras formas por essa questão da valorização do que eu desejo fazer com o recurso financeiro que eu tenho. Eu prefiro comer três lanches ou uma cesta que dá para alimentar até três pessoas por uma semana?” 

Só o que cabe na bandeja 

Um ponto bem interessante que o Júlio trouxe durante a entrevista foi a questão das dificuldades que os produtores rurais têm ao tentarem vender para os mercados, pois só podem colocar o que cabe em uma bandeja com medidas exatas, quando a natureza não tem essa exatidão toda. “A questão principal é que a gente tem que atender uma necessidade de mercado que ele está estipulada para uma bandeja e todo produto tem que caber. Uma abobrinha brasileira tem que ter entre 18 cm e 22 cm, mais do que isso não cabe na bandeja que o supermercado pede e, por isso, ela não pode ser usada”.

Outro problema está em conscientizar o comprador sobre a necessidade de respeitar o ciclo da própria natureza. “Fomos habituados a termos tudo, o ano todo, à disposição. Na agricultura orgânica não funciona desse jeito”, reflete Júlio. 

O combate ao desperdício de bons alimentos  começa em não exigir perfeição da natureza

Richard Geremias, de 36 anos, fez o caminho contrário ao de muita gente. Enquanto muitos que nasceram no interior sonhavam em morar na capital paulista e conquistar espaço na “cidade grande”, Richard passou boa parte da vida na capital paulista, estudou agronomia e decidiu viver no interior. “Trabalhei em São Paulo com equipamentos hospitalares por seis anos, abandonei para estudar e tive esse chamado interno para ficar mais próximo da natureza. Decidi estudar agronomia para entender melhor sobre plantas, cultivo e agricultura em 2013”. Três anos depois, a porta de entrada no Sítio A Boa Terra aconteceu através de um estágio. Atualmente, ele é o responsável pela equipe de produção. 

Em tempos de harmonização facial e cultura de um padrão de beleza “perfeito” nem os vegetais são poupados. As frutas, legumes e verduras precisam chegar até aos consumidores mais exigentes sem nenhum defeito.“O tomate tem muita broca, fura o fruto. Você consegue uma produção boa, mas sem padrão. Como lidar com esse padrão que está cada vez mais exigente para o orgânico também? É um grande desafio para o produtor”.

A necessidade de levar os orgânicos para outras regiões 

De 1981, quando o sítio foi fundado, até os dias atuais, as pessoas que atuam com a produção de alimentos orgânicos no local presenciaram as transformações do campo, do consumo e do êxodo rural. Resistiram, reinventaram e recriaram maneiras de conectar o campo com as pessoas. 

Atualmente, a logística utilizada pela equipe é: a venda de cestas ou itens orgânicos avulsos acontece online. Para compor essas vendas, eles colhem os alimentos do sítio às segundas-feiras a partir das 6h30, separam depois das 10h e realizam as entregas às terças-feiras, principalmente em São Paulo e região. Além disso, atendem também a um mercado de Jundiaí, alguns locais do Rio de Janeiro, Maranhão e Teresina. “Só a região não consegue absorver o que produzimos ainda, nem gira recursos financeiros para manter o negócio”, reforça Júlio. Além disso, como existem alimentos que se adaptam melhor a uma região com um determinado clima, existem as parcerias. 

Se as pessoas não vão até o orgânico, o orgânico vai até as pessoas

Ana Lina Tobias, de 56 anos, coordena a equipe que separa os alimentos destinados às cestas. Ela nasceu em São José do Rio Pardo. “Eu sempre morei em roça. Então, a gente não usava veneno na horta”.

Assim como Tião, ela estudou pouco, mas quis terminar os estudos mais tarde. “Na minha época, quando fazia a segunda, terceira série tava bom. Tomei a decisão com 17 anos de voltar a estudar. Eu ia de ônibus, fiz dois anos de supletivo e fiz até o terceiro colégio”. Ana casou, teve filhos, trabalhou no Sítio A Boa Terra por 13 anos. “Já trabalhei na embalagem, já fui do campo, trabalhei com o pessoal da produção, no setor de compras, fazia o planejamento”, e saiu em 2013 para empreender. 

As dificuldades da agricultura familiar somadas a alguns prejuízos, causados por clientes que não pagaram pelos produtos, fizeram Ana pausar este sonho em 2015. De lá para cá, trabalhou em outros lugares até receber o convite para coordenar a equipe da separação dos alimentos do sítio A Boa Terra em 2020.

Ao longo do dia, a rotina dela é assegurar que os alimentos serão separados dentro das conformidades exigidas pelas certificadoras. Para evitar o desperdício de alimentos, que continuam nutritivos, mas não estão nos padrões estéticos exigidos, ela nos conta que são aproveitados durante os eventos que acontecem no sítio, pelos próprios colaboradores  ou  doados a uma instituição local. 

Do sítio à periferia de São Paulo: o combate aos desertos alimentares em São Miguel Paulista

Regiões periféricas têm vários comércios locais e um dos mais representativos é o mercadinho do bairro, que facilita o acesso aos alimentos da população. Nesse tipo de comércio, os alimentos ultraprocessados invadem as prateleiras. “Os alimentos ultraprocessados contém aditivos químicos que são substâncias não nutritivas utilizadas para melhorar a aparência, o sabor e a durabilidade do alimento. Estas substâncias podem causar diversos males à saúde como câncer, alergias, alterações no comportamento, como hiperatividade, além de enxaqueca, alterações na microbiota intestinal, hipertensão, diabetes”, explica a nutricionista Milena Fernandes. 

Entre as periferias de São Paulo, organizações e lideranças comunitárias  têm mudado essa realidade ao inserir atividades educacionais, de empreendedorismo e alimentação saudável dentro do bairro, como em São Miguel Paulista, mas não atinge a todos. “Na periferia de São Paulo não é assim. Tem um ponto na União Vila Nova, tem um ponto em São Matheus das associações das mulheres. Tem um ponto na zona sul como restaurante da Tia Nice e toda a feira do Thiaguinho. Alguma coisa na Brasilândia, mas ainda é pouco”, quem diz isso é o Antonio Hermes de Sousa, cearense, nascido no município de Tauá. Desde meados dos anos 2000, ele busca promover projetos sociais em São Miguel Paulista.

Antonio Hermes na sede da Uni-diversidade – Foto: Rosiana Alda

Escutador de histórias como prefere ser chamado, ao invés de líder, Hermes conta que veio morar em São Paulo em 1979 e trabalhou como garçom por 10 anos. Depois, voltou para a sua cidade natal e conheceu a sua esposa. Em 1989, o pai vendeu a propriedade da família.  “Em uma semana veio o plano Collor e a gente perdeu tudo. Aí eu vim para São Paulo, em 1989, decidido a não trabalhar mais. Vim achando que estava certo roubar os outros. Fui preso em 1990”. Foi com o trabalho realizado em um ateliê no Bixiga com pessoas da antiga FEBEM (atual Fundação Casa), em 2000, que ele começou a se envolver com projetos em apoio à transformação social. “Como a gente já vem de um lugar de escassez, no nordeste também é escasso, por mais que tenha muita terra é escasso de chuva, a ideia é que a gente ocupe todos os espaços possíveis e regenera as funções desses espaços. Daí nascem o Viveiro Escola, Mulheres do GAU, a Uni-Diversidade da Quebrada, Escola debaixo da ponte, espaços que estavam aí ociosos”, enfatiza.

Outro conceito que ele leva muito a sério é o de promover uma educação desenrolada. “Essa educação desenrolada é com essa visão: O que eu faço onde estou? Como melhoro onde estou?”. Existem diversas oportunidades gratuitas aos moradores e que são desenvolvidas entre as 5 “ensinanças”, como intitulou os projetos da Uni-Diversidade: Ensinança de Gastronomia, de meio ambiente, comunicação comunitária, empreendedorismo com geração de renda, artística e cultural. 

Mulheres do GAU promovem acesso à horta urbana dentro de São Miguel Paulista

Helena Caroba e Aldinéia Pereira da Silva são nordestinas e estão à frente  das Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana) com mais sete mulheres. Caroba chegou ao Viveiro Escola há quase 15 anos, quando a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano) cedeu o espaço, ninguém enxergava ali como um local de produção de hortaliças, ervas medicinais e PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais). Nesse período, houve muito trabalho para a própria população local mudar o cenário e iniciar a horta orgânica do bairro. “Eu costumo falar que essa história de trabalhar com a permacultura, com a natureza, é para quem gosta, mesmo sem ter recursos, ela se sente em um refúgio”. E o refúgio da Caroba é florido, cheio de borboletas, abelhas, plantas, vegetais orgânicos e uma casinha de pau a pique que ela cuida com muita dedicação. 

Os primeiros contatos com a alimentação orgânica da Helena começaram na infância e adolescência. Ela nasceu em Serrolândia (BA) e morou em Jacobina, no mesmo estado. “Na casa da gente, no quintalzinho da vovó tinha a gamela, uma bacia. Colocava terra nela e plantava a cebolinha, o coentro, a alface. Ali já era uma comida orgânica. Já tive esse olhar das coisas gostosas, do cheiro e do sabor” — recorda.

Aos 7 anos, ela ficou órfã de pai. A mãe dela teve seis filhos. Recorda-se do irmão ir trabalhar com sisal para ajudar no sustento da família. Dona Helena morou com a tia e voltou para casa da mãe com 9 anos. Depois, trabalhou de babá para uma família. Conheceu São Paulo aos 12 anos, quando veio a passeio com a família que trabalhava. Retornou para morar na metrópole em 1978. Helena trabalhou em empresas, casa de família e veio para São Miguel para ser zeladora de praça e aprendeu a lidar com a terra pelos cursos oferecidos pela CDHU. Hoje, aos 68 anos, cuida do jardim que ajudou a levantar. “Aqui eu ajudo de qual forma? Plantando, deixando esse lugar maravilhoso”. 

Já Aldinéia, mais conhecida como Léia, encontra a dona Caroba todos os dias de trabalho na sede das Mulheres do GAU, e também não é paulista. Veio da Bahia e reforça que a horta urbana do viveiro faz recordar a sua infância e ancestralidade. 

Conheceu o trabalho bem cedo, aos 13 anos levava alimentos para vender em feiras. Depois, ficou um bom tempo trabalhando em mercado. Aos 22 anos, conheceu o esposo, mudou-se para Guarulhos e teve uma filha. Há cinco anos, ela vive com a família em São Miguel Paulista. Por ser vizinha do Viveiro Escola, aproveitava para entrar no local. “Como aqui é cheio de plantas, me chamou a atenção. Comecei a andar por aqui com a minha filha, lembrava da minha vó”. Depois, passou a se envolver cada vez mais. “Aqui têm almoços e comecei a lavar a louça como voluntária”. 

Atualmente, é colaboradora remunerada do espaço e divide o seu tempo entre cuidar das plantas, levar e buscar a filha de 7 anos na escola. Ela também reforça que existem outras realidades lá dentro. “Tem mulheres, aqui, que são mães solos e precisam dessa renda”, por isso enfatiza o quanto é importante receberem mais incentivos do poder público, encontrar mão-de-obra que ajudem a expandir as vendas e também a terem mais escolas e empresas interessadas em oficinas de permacultura e refeições que oferecem.

Em parceria com as Mulheres do GAU, o CREN — Centro de Recuperação e Educação Nutricional — realiza duas compras: uma de cestas de alimentos que vão para o Centro de Educação Infantil (CEI) e sacolas enviadas às famílias de outras regiões que não têm condições financeiras de comprar  as hortaliças e PANCs orgânicas.

Às segundas-feiras, Léia utiliza um carrinho de mão, ou uma bicicleta, para  levar os alimentos da horta até o CEI-CREN,  e esses têm destino certo: alimentar as crianças que estão com algum desvio nutricional. 

Durante a entrevista, seu José Carlos de Medeiros, de 53 anos, chegou para levar algumas hortaliças para casa. Morador de São Miguel Paulista, ele saiu de Sítio Novo (Rio Grande do Norte), onde morava em sítio, e veio para São Paulo em 1987. Na adolescência, vendia ferro velho. Quando chegou na capital, trabalhou por 8 anos em feira, depois em uma empresa, montou a própria papelaria e teve loja por 25 anos. 

Em 2004, passou a ter mais consciência sobre o consumo de alimentos orgânicos ao trabalhar em um projeto social com crianças da comunidade. Quando ele não encontra o que precisa no Mulheres do GAU, percorre 20 minutos de carro, aproximadamente, até um mercado que tem os alimentos orgânicos. Também indica que há espaços na própria comunidade que poderiam ser utilizados para mais hortas. “O que acredito é que precisa ter uma articulação para utilizar esses espaços”, reforça Medeiros.

Orgânicos para todas as idades

Adolfo Pereira de Mendonça, de 39 anos, é nutricionista e engajado com os projetos da comunidade há 10 anos. Ele nasceu na Zona Leste de São Paulo e, atualmente, mora em Osasco. Durante a formação acadêmica, conheceu São Miguel Paulista durante um estágio. Assim como Richard, que está lá no sítio a Boa Terra, ele também continuou trabalhando com o direito à boa alimentação. Atualmente, se desdobra para atuar tanto no CREN, como nutricionista responsável pelo semi-internato de 80 crianças do CEI, quanto na Uni-Diversidade, onde realiza oficinas gastronômicas com jovens, adultos e idosos em busca de resgatar as ancestralidades da comida sertaneja. 

Sobre o trabalho com as crianças, ele explica que a “criança que passa na UBS, e é identificado desvio nutricional — baixa estatura, baixo peso e excesso de peso —  é encaminhada ao CREN para realizar o acompanhamento e tratamento. E têm as crianças que ficam lá conosco em um regime de semi-internato, que é um CEI acoplado com um equipamento de saúde”. 

Durante o período que essas crianças estão no CEI, recebem cinco refeições com base orgânica e as famílias também são orientadas. 

Ele está à frente das sacolas doadas às famílias em vulnerabilidade social e reforça: “uma coisa que temos muito forte é não ser uma doação apenas assistencial. Tem um processo educativo em volta dessa doação para que as pessoas possam, a partir dessa sacola, se interessarem e procurarem onde podem adquirir esses alimentos”.

Para ele, uma forma de deixar o alimento orgânico mais barato é eliminar algumas barreiras. “Não custa mais caro quando eu tenho esse acesso ao agricultor, nessa cadeia curta do alimento. Eu estou comprando um alimento mais nutritivo, que não onera o planeta, não onera a saúde e estou economizando, aí é xeque-mate”. 

Sete anos atrás, ele fez um mapeamento das ruas de São Miguel Paulista e identificou que a maioria das pessoas não precisariam andar nem 400 metros para encontrar alimentos in natura. No entanto, hoje a maior dificuldade da população é saber diferenciar o in natura convencional do orgânico. “Se você pega as famílias que estão a 1,6 km daqui, elas não sabem que existe o Viveiro Escola. Falta educação alimentar e apropriação do bairro para que as pessoas se identifiquem e saibam onde encontrar”. 

A iniciativa que doou mais de 75 mil cestas em meio à pandemia, conectou uma rede de apoio aos produtores rurais de orgânicos e projetos sociais 

Júlio, Richard, Sebastião e Ana não conhecem a Léia, Adolfo, Helena, José Carlos e Hermes, mas foram conectados de um certo modo. De um lado, quem produz alimentos orgânicos e precisava do escoamento deles para evitar prejuízos e desperdícios em meio à pandemia de covid-19, do outro, pessoas que atuam em projetos sociais em São Miguel Paulista e que precisavam de doações às famílias da comunidade. 

Neste período, surgiu o “Orgânico Solidário”, plataforma que recebe doações de alimentos dos produtores rurais e envia para as instituições que distribuem para as famílias que precisam. Entre os produtores rurais parceiros está o Sítio A Boa Terra, que integra a plataforma desde o começo e chegou a fornecer mais de 600 cestas no auge do projeto, além de contribuir com doações. As famílias em situação de vulnerabilidade social, que participaram das atividades desenvolvidas em São Miguel Paulista foram beneficiadas, recebendo alimentos orgânicos gratuitamente. Foram mais de 500 toneladas de alimentos produzidos para compor mais de 75 mil cestas doadas. A ação envolveu a participação de 100 produtores rurais pelo país.

Tanto os produtores rurais do interior de São Paulo quanto às iniciativas em São Miguel Paulista e dos idealizadores do Orgânico Solidário demonstram como é possível combater os desertos alimentares através do acesso à informação, educação ambiental, conscientização e efetivo contato com os alimentos saudáveis.

*Rosiana Alda é jornalista, atuou como produtora de TV, redatora e repórter freelancer. Escreveu para portais, sites e blogs, como o da Beauty Fair e IJnet. Atualmente, trabalha como jornalista independente com pautas sobre preservação do meio ambiente e alimentação saudável para pessoas com poucos recursos financeiros. Ele foi selecionado a partir do edital Colabore com o Notícias&Análises 2022.

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