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Do Complexo da Maré à Esplanada dos Ministérios: Entrevista com Anielle Franco

Ministra da Igualdade Racial relembra vivência no Complexo da Maré e comenta projetos de políticas públicas voltadas à população negra em territórios populares

Por Isabella Rodrigues

Rio de Janeiro – Busca por justiça, reparação social e democracia estão na agenda de Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, professora, jornalista e ativista. Escolhida pela revista Time como uma das 12 mulheres que trabalham para um mundo mais igualitário, a carioca, nascida e criada no Complexo da Maré, vem de uma infância permeada por jogos de vôlei em quadras de barro e chega ao Ministério com o compromisso de lutar pelo fortalecimento e ampliação de políticas que culminem na dignidade de vida do povo negro brasileiro.

Anielle não planejava entrar na política. Isso mudou quando sua irmã foi assassinada. Há 5 anos a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram brutalmente mortos a tiros em um atentado no Rio de Janeiro. Marielle defendia os direitos humanos e lutava por igualdade. A pergunta “Quem mandou matar Marielle?” segue sem resposta até o momento. Conhecida internacionalmente após o crime, a jornalista fundou, em 2018, o Instituto Marielle Franco, referência no monitoramento de incidentes de racismo, sexismo e violência política contra mulheres.

Instituído em 2003, no primeiro governo Lula, com a denominação de “Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial” (SEPPIR), o Ministério da Igualdade Racial (MIR) retorna após a pauta do racismo ser deixada de lado da pasta ministerial no último governo. Em um país que carrega um histórico de 400 anos de escravidão, onde 54% da população é negra e vive em sua maioria nas favelas e periferias, os marcadores de raça e classe devem estar incluídos na elaboração e execução de políticas públicas que visam a garantia de direitos de forma igualitária. Em entrevista ao Observatório de Favelas, a ministra comentou sobre os planos para reconstruir as políticas de igualdade racial no país.

O que significa ser uma mulher negra e cria da favela da Maré à frente do Ministério de Igualdade Racial em um país ainda racista como o Brasil?

Significa muita coisa. Acho que se eu tivesse que elencar, diria capacidade de sonhar. Significa evolução, significa, talvez, exceção da regra. Significa luta, força, ancestralidade. Significa aprender a lidar com dificuldades que eu acho que só o povo favelado, pobre, periférico, só o povo que mais sofre nesse país sabe. Tem muita coisa que a gente passa morando na favela e eu, como mareense, sempre me lembro o quanto que era difícil para mim entrar e sair da Maré em alguns momentos. Jamais, na minha cabeça, eu imaginava que eu iria estar no lugar que eu estou hoje. A violência sempre passava pela minha cabeça. Eu sempre tinha muito medo do que podia acontecer com a gente entrando e saindo ali. E aí, eu acho que chegar nesse lugar é poder ter o olhar de quem está aí. Um olhar cuidadoso de quem sai da favela, mas a favela não sai dela. Falar da Maré me deixa saudosa, me deixa com vontade de evoluir cada vez mais, mas, além disso, poder fazer com que esse povo também evolua.

Anielle Franco durante posse no Ministério da Igualdade Racial. Créditos: Fátima Meira

Como você se sente em ser a primeira e única brasileira a ser indicada “mulher do ano” pela revista Time?

Eu fico feliz, contente pelo reconhecimento. Eu fico muito orgulhosa pela minha família, pela minha mãe. Minha mãe teve um ano muito difícil em 2018, um ano que deu uma piorada quando veio a descoberta do câncer. Estar nesse lugar hoje, que a gente constrói com muito trabalho desde 2018, é entender que a gente não chega aqui sozinha. Eu acho que eu não estaria aqui se não fosse pela criação que eu tive, que eu sigo tendo até hoje pelas trocas, pela conversa. Eu me sinto muito honrada de estar representando o país inteiro, mas também, para além do país, eu acho que a melhor coisa é poder chegar nesse lugar e dizer que é cria da favela da Maré, que é uma mina preta, que foi professora… pretendo voltar a ser em algum momento se a vida e a agenda permitirem. Mas a ficha está caindo aos poucos.

Como foi a sua infância na Maré e que lição você traz desse período para o exercício de seu cargo?

A minha infância na Maré foi uma infância muito alegre. Eu brincava muito na rua. A gente só não descia quando estava tendo operação ou tiroteio. Eu aprendi a ser alegre na Maré. A minha maior lembrança da Maré é família, amigos, alegria e infelizmente a violência do Estado e a violência que nos rodeava. As minhas maiores lições de ser uma mulher favelada é não desistir, é andar sempre de cabeça erguida. É saber que a gente pode ficar sem água, ou então ficar semanas sem luz, ou então não conseguir fazer aquela compra daquele dia daquele mês porque estava tendo operação e estava tudo fechado. Ou ficar sem aula também pela violência ou por ter perdido uma professora, perdido uma pessoa querida… Eu tenho muitas memórias boas, memórias de muita luta, memórias de pré-vestibular, por exemplo, ali em cima no Timbau. Eu fui muito feliz ali, eu aprendi muito. Foi onde também, ao mesmo tempo que minha irmã dava aula, eu descobri que existiam bolsas para universidades particulares. Quando eu acabei o ensino médio, eu ganhava 236 reais trabalhando de telemarketing e achava que era impossível sair dali e ter um emprego digno. Então, a Maré traz o vôlei pra mim. Eu jogava naquelas quadras de barro em que a gente amarrava o barbante. Mas ao mesmo tempo que a gente jogava, pensava nesse futuro pós ensino médio. Eu já estava certa de que no meu último ano de ensino médio eu iria parar de jogar. E aí eu me candidatei para a Atento e eu fiquei, passei na dinâmica e tem até hoje na minha carteira de trabalho 234, 236 reais. E eu fiquei 2 meses trabalhando naquilo, eu ia para a escola e depois ia para lá. Foi quando veio um jogo e o técnico viu jogando e falou “eu preciso levar essas meninas para lá [Estados Unidos]”. Então a minha infância passa por isso, a lição passa por isso. Em um determinado momento eu não tinha nada, tinha apenas a vontade de jogar, no outro eu estava com uma bolsa para morar nos Estados Unidos de um esporte que começou nas quadras de barro da Maré.

São 5 anos sem respostas acerca do assassinato de Marielle e Anderson. Ao seu ver qual a importância da sociedade civil na cobrança de respostas e justiça?

Importantíssimo. Todas as vezes que eu contei com a sociedade civil desde 2018 até 2022, a gente teve muito acesso a respostas, a enfrentamentos, mídias. Eu nunca vou esquecer, eu viajei para a França para ser recebida pelo Macron com um grupo de dez ativistas escolhidos pelo mundo inteiro. E aí o Macron fez uma fala do tipo: “Você está em perigo no Brasil? Venha para a França e fique aqui. A gente te recebe”. E essa fala dele rendeu várias entrevistas ao vivo, na França e em inglês. Quando a gente voltou, voltou com outro patamar porque saía na mídia internacional voltava para todos os jornais. Mas se a gente saía na mídia internacional e conseguia estar nos lugares era por conta da sociedade civil, não era pelo Estado. Eu tenho a sociedade civil como uma parceirona. Tem o Instituto Marielle Franco que está lá firme e forte. É um lugar que eu tenho muito carinho e muito cuidado, não só por ter sido fundadora, mas por acreditar nas pessoas que estão lá. O primeiro órgão da sociedade civil que nos ajudou muito foi a Anistia Internacional e a gente rodou o mundo com a Anistia. Se não fosse pela sociedade civil acho que a gente nem saberia das coisas que existiam, assim, possíveis de fazer.

Créditos: Jean Barreto

Como sua posição atual honra o legado de Marielle Franco e rega suas sementes?

A minha posição, antes de qualquer coisa, é a posição de irmã. Da pessoa que chega no lugar onde mataram ela, que encontrou ela com a cabeça aberta e que vai para o IML. A posição de honra de irmã. É a condição de honra da minha melhor amiga. A honra do legado e da memória vem antes mesmo de eu ser essa pessoa da Time ou do Instituto Marielle Franco, do Ministério… Eu só entendi o tamanho do legado e da memória que teria no 15 de março, no velório. Eu nunca vi aquela praça tão cheia. A minha posição é primeiro de honrar os valores, honrar o que eu aprendi, honrar a parceria. Eu sempre costumo dizer que se tivesse sido ao contrário, se eu tivesse sido assassinada lá na rua, por exemplo, voltando da escola, ela estaria fazendo muito mais coisa, se duvidar. Então é nesse lugar de honra, primeiro nisso e depois um lugar de honra de diretora, ministra, militante do movimento negro, educadora, de uma pessoa que acredita na educação pública, no esporte, enfim, é uma posição de honra até o final sem nunca esquecer o porque eu estou aqui.

Recentemente o Ministério da Igualdade Racial anunciou que articula políticas de geração de empregos para mulheres negras. Quais outras políticas de promoção para mulheres negras pretende articular?

Além disso, o banco de currículos é algo que a gente quer fazer de forma recorrente. Acho que não é só cadastrar. A questão de um possível decreto, lei dentro do serviço público para mulheres negras é uma outra pauta. A gente vai lançar agora uma busca ativa de mulheres negras para se cadastrarem no CadÚnico. Tem também muita vontade minha de fazer coisas para a violência política porque mulheres quando chegam nestes lugares são rechaçadas, violentadas e tantas outras coisas. Tem o lado “Anielle atleta” que já falou com a Ana Moser para uma campanha que será lançada no dia 21 de março. Na campanha do Lula teve um pedido de ter um gabinete das periferias, agora o Ministério das Cidades tem a Secretaria das Periferias e a gente está construindo isso para que tenha de fato não só um diagnóstico do que se precisa, mas também ações primordiais que a gente pode fazer de imediato. Passa pela saúde da população preta que vai ter uma coordenação para debater desde violência obstétrica até depressão, suicidio, que é o que tem crescido na população preta e pobre.

As favelas são formadas majoritariamente por pessoas negras. Enquanto Ministra, quais políticas e ações você considera implementar para esses territórios?

Primeiro, tem o enfrentamento do genocídio da população preta e favelada porque é inadimissivel a gente não debater e não questionar as entradas tão abruptas, covardes e massacrantes do Estado dentro de favelas e periferias. O segundo ponto é o acesso ao SUS, upas, hospitais públicos. O terceiro ponto é o esporte. Tudo o que eu falo de priorização, eu sempre falo com meu recorte mental de favela. A última coisa é o social e cultural. O que a gente não pode esquecer é que tem um povo ali e tem um povo que sofre, tem um povo que precisa e que está na esperança do que será feito. Então, para além de lançar o Bolsa Família, esse Bolsa Família tem que chegar. O esporte e lazer tem que chegar, a cidade asfaltada tem que chegar, a água, o encanamento… E educação: Por que tem tanta escola fechada? Por que tem escola que não acabou de ser construída? A ideia é que tudo o que a gente consiga trazer, a gente consiga replicar ou iniciar a partir da favela para a ponta.

Como o Ministério irá atuar para a eliminação da discriminação racial?

Acho que tem um primeiro ponto que, para mim, é um dos principais: a comunicação de dentro para fora. Teve um primeiro passo com a lei da injúria racial. É suficiente? Não. Acho que vai perpassar por aplicações de leis, por comunicação, por trabalhos de políticas de ações afirmativas. Políticas públicas eficazes e concretas, comunicação, diálogo com respeito e lei, porque o cara que é racista tem que ser preso. Às vezes, mesmo quando a gente chega num lugar renomado, um lugar de conhecimento, um lugar de avanço, ainda assim o racismo chega também. A minha meta dentro do Ministério é, para além de políticas públicas eficazes, o diálogo com essa sociedade racista de quase 50 milhões de pessoas que defendiam uma política, que era um projeto político contrário a tudo o que a gente defende hoje. É muito trabalho, é muita luta, mas a gente está aqui com disposição para isso.

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