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Noite das Estrelas ilumina as ruas da Nova Holanda

A Ocupação Noite das Estrelas homenageia os shows LGBTQIA+ que aconteceram no Conjunto de Favelas da Maré nas décadas de 80 e 90.

Por Isabella Rodrigues

A Noite das Estrelas voltou. Artistas LGBTQIA+ protagonizam espetáculo que homenageia a memória dos chamados “shows gays” que marcaram a história do Conjunto de Favelas da Maré durante os anos de 1980 e 1990. A ocupação, de iniciativa do coletivo Entidade Maré, contou com a presença de mais de 500 pessoas na sua estreia, em 4 de junho. De forma gratuita, o espetáculo “Noite das Estrelas” acontece aos domingos na favela Nova Holanda e permanece até 9 de julho.

Performance em encruzilhada que cruza as ruas Teixeira Ribeiro e Principal, na Nova Holanda. Foto: Vitória Corrêia / Imagens do Povo.

A cidade do Rio de Janeiro abriga em sua história a memória e a resistência LGBTQIA+. Um legado que perpassa desde performances realizadas pela comunidade queer no Centro do Rio a artistas lendários como Madame Satã, Eloína dos Leopardos, Divina Valéria, entre outros. Na Zona Norte do Rio, o Conjunto de Favelas da Maré foi palco de shows protagonizados por artistas LGBTQIA+ em uma época de transformação política, social e cultural. Nos anos 80, após um longo período de ditadura, onde, a Constituição de 1988 estabelece direitos fundamentais e, em 1995, a Parada do Orgulho LGBTI+ acontece pela primeira vez na cidade. Nesse contexto, em que a discriminação e a violência contra essa comunidade eram acentuadas e políticas públicas de acesso à cultura para territórios de favelas era inexistente, performistas encontraram na arte a celebração das diferentes formas de existir.

Na atual conjuntura social a luta por respeito e dignidade de vida encontra cada vez mais espaço nas discussões sobre garantia de direitos para a população LGBTQIA+. Em especial no território da Maré, essa busca ganhou força através da atuação de movimentos sociais, ativistas e da comunidade como um todo, o que gerou conquistas como a criação do primeiro Centro de Promoção de Cidadania LGBTQIA+ de uma favela. Nesse sentido, a Ocupação Noite das Estrelas propõe uma série de atividades para além da apresentação artística, como exposições e exibição de filmes durante os dias de espetáculo em aparelhos culturais e instituições parceiras no território da Maré, a fim de trazer a cultura LGBTQIA+ preta e periférica para o centro do debate sobre arte.

A produção tem início na pandemia de Covid-19, em 2020, com a criação do Entidade Maré, projeto que pesquisa a memória cultural LGBTQIA+ no território e se desdobra em uma plataforma virtual, além de linguagens artísticas e historiográficas. Inseridos na disputa de narrativas, os irmãos Wallace Lino e Paulo Victor Lino, diretores da ocupação, passaram a movimentar uma pesquisa direta sobre as narrativas LGBTQIA+ do Conjunto de Favelas da Maré, sobretudo nos shows de 1980 e 1990, um deles com intitulado como “Noite das Estrelas”. A pesquisa resultou no filme “Noite das Panteras” e depois no documentário performance “Noite das Estrelas”; este segundo teve sua estreia no Festival Internacional de Cinema Zózimo Bulbul, em 2021. Após 2 anos de investigação, o espetáculo ganha vida nas ruas da Nova Holanda através do Programa de Fomento Carioca (FOCA).

Paulo Victor Lino (à esquerda) e Wallace Lino, diretores do filme e do espetáculo Noite das Estrelas. Foto: Suellen Cloud Atlas.

“Existe uma população mareense, mas as corpas LGBT não estão incluídas, nem no fazer artístico nem no desenvolvimento das pesquisas. Então, esse lugar de criar o Entidade é para colocar as nossas narrativas em foco, trazer as nossas histórias e falar que nós estamos aqui. Nós estamos criando, nós estamos produzindo, nós estamos existindo e nós estamos amando de diferentes formas”, afirma Paulo Victor Lino.

Festa como forma de reparação história 

Artista Milu Almeida inicia performance em encruzilhada homenageando pessoas de religiões de matriz africana. Foto: Flavia Costa.

O Moto Táxi da Rua Teixeira Ribeiro, próximo a passarela 9 da Avenida Brasil, marcou o ponto de encontro para dar início ao espetáculo no dia 25 de junho. Os artistas deram orientações ao público sobre não fotografar ou filmar durante o evento e a partir daí iniciaram uma caminhada junto a uma exposição itinerante com banners de tecido que estampavam fotografias dos performistas que realizaram shows há 40 anos na região.

A primeira parada aconteceu na encruzilhada onde as ruas Teixeira Ribeiro e Principal se cruzam. Uma motocicleta se juntou a cena pilotada por um dos artistas em que, na garupa, Milu Almeida ergueu um bastão de fumaça rosa, dispersando a cor ao redor dos espectadores. A poesia voltada a homenagear religiões de matriz africana se desdobrou em música e na dança performática com mais bailarinos que no figurino estampavam variações das cores rosa, laranja e roxo.

Celebrar a vida, a diversidade e a liberdade de existir é parte da premissa do espetáculo, subvertendo as narrativas de violência que frequentemente estão atreladas a corpos LGBTQIA+. Além disso, performistas, travestis e outros artistas que não se enquadram nos padrões normativos de gênero ainda são marginalizados e esquecidos pela indústria cultural, o que não só mostra a falta de representatividade como também perpetua estereótipos prejudiciais à vivência dessas pessoas.

“Ter ocupações desses corpos nesses espaços é crucial para que haja uma mudança, mas se a gente não exige uma mudança de pensamento, uma mudança de estrutura, de audiência e recepção desses corpos, a gente continua com as mesmas violações”, elucida Wallace Lino.

Dança performática realizada por artistas do balé de Noite das Estrelas. Foto: Lourdes Rosa.

“Saia da janela, deixa de bobeira…”

“[…] Cria de verdade vem pra Noite das Estrelas”, cantaram os artistas durante o trajeto pela Teixeira Ribeiro. No caminho pelas ruas da favela, moradores com olhares curiosos e sorridentes apareceram nas suas janelas e lajes para contemplar a cena artística. Outros aceitaram o convite e se juntaram aos espectadores que, junto aos artistas, dançaram e cantaram envolvidos no ritmo de festividade. Chegou então o momento em que o público foi orientado a se dividir em três filas, assim a maioria recebeu vendas para seguir caminho através de uma experiência sensorial. Segundo Wallace a proposta busca além de estimular os sentidos, afastar o olhar turístico da favela que muitas vezes vem atrelado a uma narrativa de violência. É nesse misto de tensão e sensibilidade que a “Noite das Estrelas” se revelou como um fazer artístico que ultrapassa os estereótipos.

Público é vendado e caminha pela favela guiando-se através dos sentidos e das orientações dadas pelos artistas. Foto: Diego Reis.

Após a imersão de olhos vendados no território, o público foi recebido pela artista Jaqueline Andrade com poesia e convite a participar da festa. Jaqueline seguiu com uma performance em que os presentes participaram criando uma passarela com engradados de cerveja enfileirados, remetendo as passarelas dos shows de antigamente feitos dessa forma nas ruas.

Artista Jaqueline Andrade caminha em passarela feita com engradados de cerveja. Foto: Patricia Dias.

Um trio elétrico esperava na Rua Bittencourt Sampaio e foi anunciada a presença de Preta QueenB Rull, artista drag queen referência no Rio de Janeiro, que em cima de um trio elétrico ergueu o bastão de fumaça rosa aceso e foi recebida por gritos e aplausos. Com músicas autorais, Preta criou uma atmosfera de movimento corporal através de um show itinerante que levou em direção ao G.R.E.S Gato de Bonsucesso e reuniu moradores adultos e crianças pelo caminho.

Preta QueenB Rull realiza show itinerante em direção ao G.R.E.S Gato de Bonsucesso. Foto: Ratão Diniz / Imagens do Povo

“Não tem como resgatar as memórias. Elas estão vivas”, afirma Wallace. Assim a Ocupação se apresenta com a ideia de visibilidade e não de resgate da história LGBTQIA+ na Maré. Os diretores construíram a pesquisa a partir do acervo de fotos reveladas, vídeos e recordações das artistas que protagonizaram os shows entre as décadas 80 e 90, como Marcela Soares, conhecida como Pantera, e Erika Ravache, a Madame. Precursora da “Noite das Estrelas” na década de 80, Marcela deu início a programação na quadra Gato de Bonsucesso, local de finalização do espetáculo que contou com performances de canto, voguing e teatro.

Espetáculo segue no G.R.E.S Gato de Bonsucesso com performances de canto, voguing e teatro. Foto: Rayanne Felix.

Em entrevista ao Observatório de Favelas, Marcela, 54 anos, conta que realizar essa homenagem “está sendo um momento mágico”. Ainda, reflete sobre as diferenças entre as épocas:

“Naquela década, dos anos oitenta e noventa, o símbolo das travestis era exposição, novidade. Todos queriam entender como um ser humano do sexo masculino conseguia se transformar em mulher. Éramos admiradas, tínhamos nossos dias de glória, porém também os dias de perseguição de pessoas preconceituosas. Hoje, nós lutamos pelas nossas causas, existe ONG que nos ajuda, temos representantes que falam e lutam pelos nossos direitos na sociedade. Hoje eu posso dizer que temos alguém pela gente e que não estamos sozinhas. Hoje está bem melhor, mas o preconceito ainda existe e nos persegue.”

Marcela Soares, 54 anos, conhecida como Pantera, participou dos shows que aconteceram entre as décadas 80 e 90 na Maré. Foto: Mêrcez.

Marcela também revela estar feliz em ser inspiração e referência, mas compreende que a luta por direitos e espaço na sociedade é desafiadora. Nesse sentido, expressa um conselho à juventude  LGBTQIA+: “Nunca deixe ninguém lhe falar que você não é capaz, nunca deixe ninguém te diminuir, pois você é capaz de tudo nessa vida. Você tem direito a tudo. Lute pelas suas causas sempre de cabeça erguida. Estude, pois você tem direito de estar dentro de uma sala de aula. Faça cursos para ter uma boa formação, se possível entre em uma universidade, se forme, viva e mostre pra essa sociedade preconceituosa e machista que o direito que eles têm, você também têm”, pontua.

“As fobias e a ideia de matar estão presentes no nosso cotidiano, mas a ideia de viver também está presente. O espetáculo é isso”, finaliza Wallace. Para além das barreiras temporais, a ocupação mostra como a cultura é fundamental para provocar a reflexão sobre questões sociais que atravessam as vivências LGBTQIA+. Reparação histórica, legado e representatividade são as características centrais da homenagem, que parte de um desejo de continuidade conforme evidencia Paulo Victor Lino: “Que nossas gerações futuras estejam propondo, fazendo e refazendo a Noite das Estrelas.”

Ocupação Noite das Estrelas é uma homenagem a shows das décadas de 80 e 90 que aconteciam no Conjunto de Favelas da Maré. Foto: Flavia Costa.

O palco é a rua

“Eu sou a continuação da década de oitenta, noventa para esse tempo de hoje”, diz Lua Brainer, artista, representante da Cultura Ballroom e que compõe o balé de Noite das Estrelas. Lua conta que realizar esse trabalho tem sido revolucionário pela forma como a favela como um todo apoiou o espetáculo. Lua conta que no início os moradores se mostravam receosos com a cena artística, uma vez que os ensaios eram realizados nas ruas, mas que a apropriação do espaço como lugar de pessoas LGBTQIA+ existirem e transitarem livremente gerou o acolhimento necessário para que ocupação pudesse acontecer sem ser atravessada por olhares discriminatórios, mas que, ainda assim, aparecem.

Lua Brainer, representante da Cultura Ballroom, realiza performance no G.R.E.S Gato de Bonsucesso. Foto: Suellen Cloud Atlas.

“As políticas públicas, daqui para frente, tem que começar a pensar nessa linha de fomento, principalmente as políticas públicas que já existem, mas que não são desenvolvidas completamente para nossas corpas”, sinaliza a artista.

Através da democratização da cultura e da inclusão de pessoas com pouca representatividade na cena artística hegemônica, a ocupação reafirma o papel da arte como ferramenta para uma sociedade democrática e plural. Valorizar a diversidade de vozes e expressões artísticas deve ser parte da agenda cultural na cidade do Rio de Janeiro e no país em toda sua conjuntura. Com reparação histórica, resistência e preservação da memória, Noite das Estrelas, marca seu lugar como referência de manifestação cultural LGBTQIA+, afrocentrada e periférica.

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